quinta-feira, março 31, 2011

O necromante

Ankash olhava agora estupefato para a situação que ele provocou. A enorme sensação de fracasso tomava forte seu coração. Depois de tanto tempo? Tanto estudo? Contemplava a pilha de carne morta. A solução não se mostrava fácil, mas era bastante óbvia. O verdadeiro trabalho só havia começado.

O jovem Ankash pertencia a uma poderosa linhagem de feiticeiros necromantes. A geração de seus pais revelou feiticeiros extremamente poderosos. E vaidosos! Seu futuro mostrava-se brilhante. Mas a arrogância do seu pai, Niktalesh, o fez se proclamar o feiticeiro mais poderoso do seu tempo. E a necromancia, a arte mais perfeita. Tais palavras espalharam-se por muitos reinos. Muitos não se preocuparam com elas, mantendo-se firmes em seus próprios estudos. Outros reconheceram sua própria impotência e permaneceram calados. Um homem resolveu dar uma lição ao bruxo arrogante. Um alquimista invadiu sua torre. O cão percebeu a entrada do intruso e tentou avisar do perigo. Mas o necromante nada fez até estar de frente com o inimigo, certo da vitória. Confiante que estava diante de seu controle sobre a matéria e as almas, vivas ou mortas, esqueceu-se de um ponto fundamental. Não podia ainda criar matéria alguma. E assim, Niktalesh foi liquidado pelo alquimista, que transformou ele e sua esposa em cristal. E também o cão, que sem sucesso latia, e assim permaneceu em cristal, mostrando dentes ferozes.

Ankash havia partido em peregrinação para coletar insumos importantes aos seus experimentos. Ele nada poderia ter feito para salvar seu pai de sua própria vaidade. Mas então, diante da imagem de sua família cristalizada, só ele poderia fazer algo por eles. Acontece que apesar de com seus poderes sentir claramente que suas almas permaneciam seladas naqueles esquifes em forma de corpos reluzentes, nenhum dos seus esforços ou rituais conseguiam alterar em nada a estrutura daquela matéria sem vida. Pensou a princípio que seria fácil como animar um golem, mas infelizmente nada conseguiu. Então Ankash fez um juramento solene que a partir dali não respiraria se não fosse para procurar uma salvação para sua família e que protegeria a todo custo seus corpos vitrificados, até poder retornar-lhes a carne.

Apesar de o jovem ser extremamente habilidoso, a jornada foi extremamente árdua. A falta de orientação o deixou por conta própria. Nenhum homem pela mais alta fortuna quis dar ajuda qualquer ao filho do Vaidoso. Mas desse momento de privação Ankash realmente pode perceber que seu destino era realmente superar as habilidades de seus pais. Ainda que demorados, seus sucessos eram notáveis. E aprofundando-se em diversas artes arcanas, suas respostas foram ficando mais próximas. E chegou o dia em que ele finalmente entendeu as ações do alquimista e como desfazê-la. E uma sensação de vitória incrível tomou conta do seu corpo. O prazer de ter superado os erros dos seus anteriores. Ter tornado-se maior e melhor q eles. Nesse momento Ankash quebrou sua promessa de cuidar daqueles que eram mais importantes para ele. Não correu para resgatá-los. Correu para proclamar seu feito e festejar. Divertiu-se, bebeu e festejou como nunca antes. E sentia-se feliz como nunca, pois percebia que agora todos o olhavam com admiração. Estava plenamente seguro de si e não via nenhuma importância na quebra dos seus votos, embriagado por aquela sensação maravilhosa.

Completamente ébrio Ankash retornou a sua torre depois de alguns dias. Para seus pais de vidro era como se ele não houvesse se ausentado. Jamais poderiam ter percebido quanto tempo ele ficou fora, e o que fazia. Chegou a hora então de trazer todos de volta. Mas seus gestos estavam um tanto fora de controle. Desastrado, Ankash tropeçou em uma dobra no tapete ao aproximar-se da mãe, do pai e do cão. Caiu por cima deles, derrubando-os no chão e fragmentando-os em incontáveis pedaços. Nesse momento um certo apavoramento começou a tomar seu corpo. Mas não foi o suficiente para nublar os efeitos que a nuvem de prazer a que tinha se submetido desaparecesse por completo. Sem se dar conta exatamente do que acontecia tentou consertar tudo. Escolheu alguns pedaços de vidro, concentrou-se neles e improvisou alterando em alguns momentos seus cantos. Mas o efeito não foi o desejado. De repente o que se ouviu na sala foi um ganido de lamento tenebroso. E os pedaços de vidro tornaram-se pedaços de carne morta. Os pedaços que escolheu pertenciam ao cão. Mas ele não conseguiu juntá-los por encanto, de modo que eles se converteram de volta em carne fragmentados. A corrente da vida se rompeu e por mais que Ankash tentasse reencontrar o espírito do animal, não conseguia.

O feiticeiro percebeu então o quanto havia superado seu pai em poder, mas o quanto permanecia tão preso a ele em seus erros. E como a vaidade e arrogância ainda era forte dentro dele. E imaginou o alquimista sorrindo naquele momento. A solução era clara, mas extremamente difícil. Era preciso remontar seus pais como um quebra-cabeças. É verdade q ele podia reconhecer claramente qual pedaço pertencia a quem, tocando o pedaço de alma que aqueles cacos encerravam. Debruçou-se então naquela tarefa, difícil e desnecessária, se não houvesse sido tão tolo e egoísta. Imagine remontar ossos, músculos e órgãos, divididos em mil? Era trabalho para uma vida. Mas, envergonhado, Ankash não possuía outra opção.

Com determinação ele conseguiu completar a tarefa, ainda que quando finalizada já empatava ou mesmo avançava um pouco em idade com Niktalesh. Um olhar extremamente criterioso das esculturas remendadas revelava em cada uma um minúsculo ponto em que não reluziam. Uma falha. Mas Ankash havia vasculhado todo o salão e não havia nenhuma peça perdida. Então usou os encantamentos corretos e seus pais enfim retornaram à vida. É claro que suas almas estavam cansadas e confusas e precisaram de um tempo para reajustar-se à vida. E assim fizeram. Mas nunca se recordaram de Ankash. Reconheceram a verdade do que dizia, pois ele partilhou com eles parte de sua alma. Mas não a sentiam no fundo de seus corações. Ankash percebeu então que os pedaços que faltavam causaram aquilo, mas como ele nunca os achou só sobrava uma solução: criá-los do nada. E para isso precisava criar uma pedra filosofal, como aquela que o alquimista usou para remodelar seus pais. Ele tinha agora uma nova missão e novamente nada podia fazer a não ser cumpri-la.

Já podíamos perceber o efeito do tempo e do fracasso no semblante de Ankash, quando ele já era um ancião e seus estudos, apesar de sempre avançarem, nunca encontrarem um fim. E Niktalesh, tendo passado um tempo tentando compreender tudo, não viu nada a fazer a não ser retomar seus estudos arcanos. E sempre recorria aos escritos do filho. Certo dia Niktalesh percebeu o erro que circulava a teoria de Ankash e chegou à solução final para ter sucesso no processo de criação da pedra filosofal. Correu de encontro a ele, mas encontrou o ancião morto. Debruçado sobre seus pergaminhos. Niktalesh entristeceu-se, mas não havia nada a ser feito. Somente dar para Ankash um funeral com honras. Lavou o corpo do ancião e preparou-o para embalsamá-lo. Ao procurar os líquidos corretos, Niktalesh encontrou dois fragmentos de cristal junto a um frasco empoeirado no fundo da prateleira. Tocou um dos cristais e sentiu uma imensa saudade, lembrando-se de sua consorte já falecida. Ao tocar o segundo, ele desapareceu da palma de sua mão com uma fagulha. E lembrou-se de tudo. Niktalesh consternou-se. Agora entendia tudo o que Ankash passou. E lamentou ter passado para o seu filho todo o seu talento, mas também toda a sua fraqueza. Naquele momento interrompeu todo o processo do funeral. E sentou-se em sua mesa para criar a pedra. E obteve êxito. Agora podia criar a vida a partir do zero. Com suas habilidades reuniu a alma de Ankash e com a pedra criou um novo corpo, dando a ele uma segunda chance. O preço pago para a empresa foi o restante de vida de Niktalesh. Ele então sentou e fechou os olhos. Ankash abriu os olhos e novamente nasceu. Dessa vez, livre dos pecados do pai.

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