quinta-feira, outubro 12, 2006

Trilha

Consegui atingir uma clareira. A grama baixa e macia faz contraste com a vegetação fechada pela qual caminhei para chegar até aqui. As arvores alinham-se em formato de elipse, eu ao centro. Olhando para uma das extremidades consigo distinguir a forma do lugar para onde me dirijo. O contorno é pouco definido, mas suficiente para apontar a direção que devo seguir. Chegando próximo às arvores vejo uma trilha que segue em direção ao meu destino. A trilha segue por apenas uns cinco metros, bifurcando-se em três caminhos. Observando o meu destino que se ergue ao longe a partir da trilha original, ele parece estar voltado um pouco mais à esquerda. Pela lógica, então, decido pegar a bifurcação da esquerda.
A trilha da esquerda é agradável, coberta de pequenas flores amarelas com folhas de um verde muito vivo, formando um tapete pelo qual vou seguindo. Em um certo momento, surge ao meu lado direito um riacho estreito que corre muito rápido. O som das águas é delicioso. Ando feliz. Depois de andar por bastante tempo, aproveito as águas do riacho para me refrescar: lavo o rosto, mato a sede. Renovado para seguir adiante. Mas em um dado momento, percebo que já havia andado o suficiente para, pelo menos, avistar meu destino. Paro um instante e olho para trás. As flores amarelas tornaram-se vermelhas por onde passei. Aproximo-me e abaixo para observá-las. Parecem tingidas de sangue. Retiro uma das flores e percebo que em seu caule existem muitos espinhos, muito pequenos. Só então olho para os meus pés e percebo que eles estão feridos até o tornozelo. Mas não sinto dor alguma. Olho atentamente para a flor em minha mão e me dou conta de que a ponta dos dedos que a seguram estão dormentes. Levanto-me. Já havia andado tempo demais para retornar e, mesmo com esse incidente, o caminho era maravilhoso. Além do mais meus pés não incomodariam enquanto estivesse caminhando pelas flores amarelas, ainda que elas o ferissem cada vez mais. Continuo seguindo o caminho. O riacho dobra à direita e desaparece subitamente. Alguns metros adiante, as flores amarelas tornam-se mais esparsas e o caminho se abre. Vejo-me então de volta à clareira. Andei em círculo por um longo tempo.
Cansado, deito-me um pouco na grama macia antes de tomar outro caminho. Aos poucos o efeito anestésico das flores amarelas passa e começo a sentir muita dor nos pés feridos. Decido que é melhor levantar e voltar a caminhar antes que a dor me domine e retire meu ânimo. Como a lógica me mandou para uma via enganosa, seguirei agora pela direita. Esse novo caminho logo não se mostra muito agradável. O capim bate quase à altura de meus joelhos e incomoda minhas feridas. As copas das árvores curvam-se sobre mim deixando cair alguns cipós que batem em minha cabeça. Não ouço mais o riacho. Pouco mais à frente, avisto uma cabana. Talvez o morador possa indicar-me o caminho correto ou dar-me algum remédio. Bato na porta e ela abre-se sozinha. A minúscula cabana está vazia. É um cômodo bastante sujo, com cheiro desagradável. A única mobília é uma cama grande. Exausto recosto-me nela. Acabo deitando e adormecendo.
Acordo reconfortado. Por uma pequena janela vejo que o sol brilha entre as folhas das árvores. Certamente passei a noite ali. Meus pés pararam de doer. O cheiro do local é insuportável. Levanto e resolvo ir logo embora. Na saída vejo repousado ao lado da porta um facão. O objeto limpo, reluzente, com um cabo bem trabalhado em couro trançado, pedrarias e madrepérola, contrasta com aquele lugar. Levo-o comigo, para resolver o problema do capim alto e dos cipós que encontrei nessa trilha desagradável. Assim que saio da cabana, me lembro de como aquele caminho era terrível e resolvo não seguir adiante, mas retornar e tomar a trilha do meio. Com o facão vou abrindo caminho pela vegetação e os pés curados me dão novo fôlego.
De volta á clareira sigo depressa pelo caminho do meio. Por ele sigo pisando a mesma grama macia da clareira. Algumas flores amarelas estendem-se à esquerda e posso ouvir ao longe o som do riacho correndo. Era também um caminho agradável, como o primeiro. Ando por ali por algum tempo sem me cansar. Mas por mais que eu ande ainda não consigo avistar o meu caminho. Nesse momento em que começo a encher-me de dúvidas, vejo um pássaro castanho, rechonchudo, acompanhando-me, pulando pelos galhos das árvores. Acho engraçado aquele pássaro gorducho com aparência de bobo saltitando. Mas fico muito feliz com sua companhia e conversamos bastante. Ele respondendo com piados estridentes. Desfruto de sua presença agradável por um tempo que não consigo medir, dado a felicidade em que nos encontrávamos. Até que de repente ele levanta vôo desengonçado. Pousa em meu ombro. Esfrega o bico em meu rosto. Vai embora.
Torno a estar sozinho e começo a sentir-me triste. Continuo caminhando. Sinto-me aborrecido. Segui por tantos caminhos e, mesmo nesse último, não consigo atingir meu objetivo. A trilha segue infinitamente. A grama curta e macia e as flores amarelas à esquerda já se tornaram monótonas. O som do riacho desapareceu quando poucos metros atrás ele cruzou o caminho me forçando a atravessar suas águas rápidas para continuar. As pernas molhadas até as canelas. O pássaro castanho deixou de me acompanhar e foi embora. A saudade é enorme. O facão é um fardo nesse trecho em que não há vegetação que feche o caminho. Sento-me no chão. Não vejo nem a sombra de meu destino em minha frente. Novamente a trilha segue sinuosa em minha frente, e quanto mais procuro aproximar-me, a distância parece aumentar. Não é exatamente uma novidade. Errei o caminho novamente. Isso tudo já está tornando-se uma constante irritante. Desisto. Aguardo. Aguardo alguma coisa. Qualquer coisa. Mesmo sabendo que dificilmente encontraria algum viajante rumando essa trilha, a menos que esteja tão perdido quanto eu. E que esse viajante então não seria de grande ajuda. A solidão naquele lugar é certeza. Sento e espero. As pernas doem. Foi a última tentativa. Gostaria de nunca mais ter que andar novamente. Não agüento mais caminhar tanto. Não quero mais caminhar. Mas sei que, insistente, quando me recuperar vou tentar de novo. Olho para o facão repousado junto aos meus pés. Olho para ele. Olho para meus pés. Alinho os dois pés, seguro o cabo ornamentado da lâmina e desfiro um único golpe com toda minha força.

Não consegui partir os ossos, mas a dor é intensa. A grama fica vermelha, assim como as flores amarelas ficaram antes. As flores amarelas. As flores amarelas estão longe do alcance das minhas mãos e não tenho forças para me arrastar. Tudo que eu vejo fica branco. A dor torna-se frio. Vejo um borrão planando sobre mim. A forma é familiar. Um retorno? Estendo a mão, mas não posso alcançá-lo.