terça-feira, julho 08, 2008

Memórias expelidas

Descendo as escadas o rapaz buscava reconhecer o ambiente. Alguns quadros na parede e lá embaixo um móvel com porta-retratos onde ele aparecia em fotos ao lado de pessoas de quem não se lembrava. Parecia ter nascido a quinze minutos atrás, quando despertou em uma cama estranha, em um quarto estranho. Desde aquele momento não se sentiu assustado, mas curioso. Reagiu como se estivesse vivendo uma aventura quando o desespero tomaria conta de qualquer outra pessoa. Se o que havia esquecido era muito desinteressante ou mesmo ruim, talvez o esquecimento houvesse sido desejado. Talvez por isso uma inconsciente sensação de alívio que superava o medo. Descendo, acabou chegando a uma sala. Ouviu ruídos. Percebendo que vinha de outro cômodo, decidiu dirigir-se até lá. Passando por um corredor entrou pela porta que dava para uma cozinha. Junto ao fogão estava uma mulher um pouco gorda de cabelos curtos que preparava o café da manhã.
-Já acordou, Pedro? O café fica pronto em um minuto.
Então a mulher o conhecia e esclareceu o seu nome a Pedro. Sua mãe, provavelmente? Não lembrava de tê-la visto antes. Ainda assim sentou-se à mesa quase automaticamente e recebeu logo um sanduíche com queijo quente. Estava sem fome. Sentia o estômago dando nós. A mulher logo se sentou ao seu lado, e colocou em sua frente um copo de leite.
-Acordei ontem de noite e vi que adormeceu com a cara no livro.
Livro? Não lembrava de ter acordado com livro nenhum. Mas que livro?
-Aquele em que sempre escreve. Seu diário... Sei lá! Nunca me conta nada mesmo.
Havia pensado alto na pergunta, mas ao menos ganhou uma resposta. Um diário. Não lembrava mesmo dele, mas seria interessante encontrá-lo. Poderia ser esclarecedor. Mas tão rápido veio a idéia de encontrar algo com que pudesse solucionar o mistério, livrou-se dela. Estava tudo tão interessante. Essa sensação de novidade. Cada momento casual parecia tão intrigante. A mulher não falava mais nada. Só comia. O sanduíche de Pedro inteiro ainda. Tentou imaginar um nome para ela. Nesse mesmo instante a dor no estômago aumentou. Levantou-se correndo e precipitou-se em busca de um banheiro. Havia um logo ao lado, no corredor.
-O que houve?
A voz foi abafada pela porta se fechando. Debruçado sobre o vaso sanitário sentia uma vontade dolorosa de vomitar. Mas não conseguia. Levantou-se e foi até a pia tentar lavar o rosto, mas antes que abrisse a torneira, vomitou. A dor passou de pronto. E viu o porquê de tanta dor. Era um pedaço de papel amassado. Seco. Desembrulhou e viu que tinha alguma coisa rabiscada. Nesse momento começou a ficar assustado. E se aquela mulher era sua mãe, poderia lhe ajudar. Voltou à cozinha. Olhou para ela, que retornava o olhar, preocupada. Resolveu dar o papel em sua mão. Ela olhou sem entender muito.
-“Vera, sua mãe”. O que é isso Pedro? Alguma piada maluca? Fiquei assustada sabia? Suba já e termine de se arrumar para ir para a aula!
Pedro pegou o papel de volta e agora podia ler claramente o que estava escrito. Não sabia reconhecer se a caligrafia era sua, mas pela reação de Vera acreditava que sim. Subiu para o quarto onde acordou, vestiu outra roupa e saiu daquela casa. Ainda na porta lembrou que deveria assistir aula. Aula de que? A dor voltou. Escorou-se na parede e foi abaixando até quase se sentar no chão. Doía muito. Mais uma vez vomitou. Outra folha de papel. Agora já sabia ler. Era um endereço, o nome de uma universidade, um número de uma sala e um horário. Já sabia onde seria a aula. Ficou receoso de perguntar-se mais qualquer coisa. Caminhou um pouco até ver um homem parado.
-Com licença, o senhor saberia me explicar como chego a esse endereço?
-Ora, Pedro, que história é essa? Não sabe mais como chegar na faculdade? E que papo é esse de senhor? Não me reconhece mais garoto?
Não. Não reconhecia. Quem era ele? Fez mais uma pergunta a si. A dor retornou no mesmo momento. Pedro saiu correndo de perto do homem que o observou espantado. Correu até a esquina e parou para vomitar de novo. “Carlos, amigo do seu pai e vizinho”. Dessa vez foi o que estava escrito. A grande aventura começava a revelar-se muito dolorida e inconveniente. A cada coisa que precisasse lembrar seria daquele jeito? Como ele poderia impedir-se de pensar em perguntas quando não sabia de nada? Pedro recomeçou a correr ensandecido já muito aborrecido com tudo o que estava acontecendo. Cansado, acabou parando em uma praça e sentando-se no banco. Decidiu fazer uma pergunta de novo. O que está acontecendo? Nada. O que diabos está acontecendo? Sem dor. Merda, o que está acontecendo? Frustração.
Então possuído por uma raiva louca Pedro pôs um dedo na garganta para induzir o vômito. Não conseguiu. Tentou mais um dedo, e mais um, até quase enfiar toda sua mão na garganta. Começou a sentir que ia regurgitar. Mas não acontecia de fato. E continuou. Sentia dor. Com a ponta dos dedos sentiu alguma coisa. E agarrou para fora sem se importar se era algum órgão. Só queria outro papel. E era. Mais um. Seco. Precisou de alguns momentos para se recompor antes de desdobrá-lo para ler. Ajeitou o cabelo e disfarçou para as pessoas que o olhavam, passando na rua.
Abriu o papel.
“Apaguei apenas as memórias que não valiam à pena. Os fracassos”.
-Meu Deus! Mas então se foram todas?
Mais uma vez a pergunta de Pedro ficou sem resposta.

sábado, julho 05, 2008

Aguardando o tempo

Mais uma noite se passa enquanto você dorme calmamente. Insone. Sabe, devo confessar uma coisa: tenho medo de dormir sozinho. Alguns lugares me apavoram mais. Quando eu era criança, meu quarto dava p um corredor com uma escada escura de onde eu não podia saber o que poderia estar vindo. A porta dessa casa agora me dá uma impressão muito semelhante. Nesses dias tenho pensado muito naqueles tempos. Tempos de criança medrosa. Sempre com medo e chorando. Sim. Eu tenho medo de muitas coisas. Ao crescer medos novos vieram e alguns antigos persistiram. Aranhas por exemplo. Deixam-me paralisado. Não ria. É verdade. Passa agora um filme que vi há algum tempo e gostei muito. Mas não me causa grande interesse. Não prende minha atenção. Será porque estou assustado demais? Talvez. Só o que espero agora é pelos primeiros raios de sol. Então vou dormir de janela aberta e porta escancarada. Mas ainda restam algumas horas para que isso aconteça. Enquanto isso eu te digo, mesmo sem que possa me ouvir: estou com medo de dormir no escuro sozinho. Poderia também enumerar meus outros medos. Mas acho que seria repetitivo. Já não disse que tenho medo de aranhas? Viu? Já repeti. Então talvez, se já retornei a isso, ainda que me pareça não ter saído em momento algum, posso falar de medos mais interessantes. Medos de bichos e assombrações são tão comuns. Não obstante, o medo da solidão não seria nenhuma novidade para qualquer pessoa, não? Mas talvez possamos tentar um pouco falar sobre ele. Tentemos então. Sabe sou uma pessoa bastante segura na maioria do tempo. Mas quando alguma coisa me faz pensar um pouco demais isso muda um pouco (e acho mesmo que dizer “pensar demais” é um disfarce barato). Certamente já me disse certamente padecer do medo da solidão, mas meu estatuto pessoal me impediu de concordar no fato de que também o sinto. E de fato encaramos isso de forma bem diferente. Ainda que de fato eu nunca esteja verdadeiramente só desde que possa sentir o calor e a névoa penetrando em meus pulmões. É uma companhia onipresente desde que possa pagar por ela. O que é muito interessante. Já pensou na conveniência de uma companhia sempre agradável que se compra por pouco dinheiro? Concordo que ela termina rápido. Mas sempre posso desfrutar de outra. Mas nem todas as companhias são tão fáceis e sabidamente prazerosas. Algumas têm que ser mais trabalhadas. Felizmente posso te dizer que sua companhia me é prazerosa espontaneamente. Não é preciso nenhum trabalho para torná-la melhor. Mas é claro que isso não me impede de ocasionalmente fazer um mimo. E como fico feliz quando eles são bem recebidos. E muito da minha ira quando eles não dão certo acontece em função de minha total inabilidade em lidar com situações em que aquilo que planejei não ocorre da maneira correta. Nesse momento mesmo acabei de retornar duas vezes ao texto procurando erros. Mas vou tentar algo diferente hoje e não retornar mais. Simplesmente deixá-lo como sair. Tentando aceitar que os erros acontecerão porque serão necessários. Ou ao menos servirão como algum ponto de interesse a um texto enfadonho. Digo isso porque nesse momento percebo que me perdi um pouco. Mas posso reverter isso retornando ao ponto. Tentemos deixar isso tudo um pouco mais coerente. Sabe aquelas pessoas que têm medo de algo que já deu errado pode dar de novo? É, às vezes sou assim. Durante um longo tempo pensei que o precedente a tudo comandava. Portanto tudo o que já foi feito uma vez poderia acontecer de novo. Como se o raio estivesse predestinado a cair no mesmo lugar. Mas convenhamos que essa idéia é muito difícil de levar adiante. Afinal, como eu poderia prever se um raio já não caiu aqui, exatamente onde estou? Há centenas de milhares de anos talvez? Há menos tempo, quem sabe. A questão é que se escolhesse seguir pensando assim estaria me trazendo dificuldades muito sérias. Mas não posso deixar de confessar que penso nisso às vezes. Mas logo penso que seria bobagem. Talvez o grande fundo disso tudo seja uma coisa que tenho muito presente em mim. Um certo assombro pelo novo, o diferente. Aquela sensação de não ser mais único, entende? Lidar com o diverso que nunca viu. Como uma criança que tem que dividir a atenção com um irmão recém chegado (aliás, coisa que nunca senti, sou caçula). Ainda que talvez travar uma batalha com um irmão já nascido seja mais desgastante. E profundamente desnecessário. Uma situação nova com a qual eu não saiba lidar me incomoda demais. E você é uma pessoa também que me traz isso. Felizmente. Afinal, pessoas assim nos dão chance de amadurecer, mudar. Causam reações. Não concorda? Ou seria bobagem minha? Não me responde? Bem, talvez não responda porque estou perguntando para uma tela de luz. Mas mesmo sem que possa me ouvir gostaria que não valorizasse demais meus medos. Pense que só em sentir-me seguro em expô-los a você já é uma enorme manifestação de confiança. Mesmo que eu não te diga nada agora. Sei que ouvirá isso um dia. Sim, é hoje mesmo esse dia. Hoje para você. E seu hoje é também meu presente. Estou nele, não é verdade? Espere um minuto. Vou acender um cigarro.

Voltei antes de terminar porque vi no filme uma cena em que uma mulher olha para um rosto dentro de um carro que some disforme. Já pensou nas pessoas que escolhe para não serem passageiras? Pensou no quanto isso é interessante. Teoricamente só seus pais são assim, levados somente pela morte que aguarda a todos. Mas algumas pessoas nós escolhemos e damos a honraria desse estatuto.

Desculpe-me. Demorei porque assistia a cena mais memorável do filme. E porque ela me fez pensar o quanto o que escrevi acima daria um belo ponto final a tudo. Mas não penso que seria correto terminar com o que seria um interlúdio. Mesmo que possamos encarar alguns interlúdios como definitivos. Então devo escrever mais algumas linhas em que simplesmente não sei o que dizer. Mas como são também cinco horas da manhã, não tardará aparecer os primeiros tímidos raios de sol. Mesmo porque hoje não choverá nem para mim nem para você. Ainda que meus medos de infância me assombrem ainda. Afinal eles são parte de mim também. E uma pessoa sem medo certamente não deve viver a excitação de superar um obstáculo. Ainda que tenha sido você mesmo quem o colocou lá. E no final de toda corrida não há sempre um troféu a sua espera? Por menor que possa parecer aos olhos dos demais não deve ser sempre importante para quem o recebe? Certa vez eu já ganhei um sabia? E independente do pó acumulado na prateleira, sempre poderei limpá-lo cuidadosamente. Mesmo porque, eu sempre o manterei lá.

terça-feira, junho 17, 2008

em cólera

É preciso escapar
da mediocridade.
E para fugir
é preciso afundar-se.
O limite do normal
é o mais indesejado e frustrante, então destaquemo-nos.
E para isso sorver quantos goles for necessário.
E buscar ser tomado pela cólera.
Sentimentos e ações em fúria.
Pois o amor nos dá apenas
gestos suaves.
Mas é preciso agir na ira.
Mostrar força.
Ainda que falsa.
Um rosto vermelho e um punho em riste.
Gritar. Sussurros são grilhões.
O afago é mais um esconderijo.
A liberdade é larga em gestos.
É única e dispensa o coletivo. Eu sou a célula base.
As reações que nos rodeiam
são apenas meras sombras desimportantes.
O fim
é solitário e enraivecido
enquanto erguemos a mão em um tapa na permanência.
Desvencilhe-se
em cólera.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Névoa cintilante

Em todas as cortes conhecidas era unanimidade: aquela jovem era a mais linda de todas as damas. E todos os joalheiros e costureiros. E sapateiros. E peruqueiros. E perfumistas. Todos disputavam quem teria a honra de vesti-la. Assim, somava-se à sua beleza natural as mais belas jóias, vestidos, sapatos, perucas e perfumes já vistos. E seu orgulhoso pai reservou um aposento somente para guardar todos esses presentes. E já era preciso um segundo. A própria natureza rendia-se aos seus encantos. A jovem era seguida por lindas borboletas furta-cor, que combinavam com tudo o que ela vestia e deixavam um rastro de poeira cintilante suspenso no ar por onde passavam.

Mas havia um problema. Sua beleza era tal que intimidava os demais. Por isso, eram poucos os que se aproximavam dela. E mais raros os que lhe dirigiam a palavra, ou olhavam nos olhos. Mas ainda assim ela tinha quatro amigas inseparáveis. E tratando-se de uma corte de relações tão aristocraticamente formais, possuir quatro amigas sinceras não era nada mal. Ao contrário. Estava de bom tamanho. Elas também eram belas e talvez isso aliviasse seu temor, ainda que as belezas fossem incomparáveis. Então a bela jovem não sentia tanto a falta de todos os outros. Mas faltava-lhe um amor. E como ela sofreu quando uma de suas amigas viajou para uma corte distante por ter encontrado lá uma grande paixão.

Outro baque foi ainda mais inesperado. O agradável pó cintilante que emanava das maravilhosas borboletas envolvendo-a em névoa majestosa trouxe grave enfermidade a uma de suas amigas. Uma reação sinistra tomou conta da pele da pobre moça, disseminando manchas vermelhas em toda sua extensão que, em alguns pontos, explodia em chagas purulentas. O doutor prontamente proibiu o contato com as borboletas e, temerosas, as demais senhoritas decidiram afastar-se da bela amiga também, mesmo com enorme aperto em seus corações. A bela então se viu mais solitária que nunca.

Ensandecida pela necessidade de amar e contato humano resolveu deixar para trás seus próprios princípios e orgulho. Uma vez que cavalheiros distintos e sérios temiam chegar perto dela, resolveu buscar a cura para a falta de afeto em homens de caráter duvidoso que, no máximo, dar-lhe-iam uma noite de prazeres sórdidos e isentos de sentimentos, sentindo-a enquanto planejavam a próxima conquista. Insinuou-se para todos os empregados. Até os mais repugnantes. Aqueles que ainda possuíam um fio de nobreza em seus corações rejeitaram-na por bondade. Afinal tal beleza não servia ao efêmero. O medo foi o que impediu que os mais asquerosos a deflorassem, afinal, conspurcar a jovem cuja beleza era reverenciada como a mais intocável das sacralidades certamente geraria perseguição implacável. Recusada por todos, a beldade passou uma noite inteira defronte o espelho. Olhou-se. E sentiu-se feia.

Resolveu então se aventurar fora dos limites de sua casa, nas tabernas mais hediondas da cidade. Não buscava o amor. Queria o homem disposto a executar o mais sujo dos serviços pelo preço certo. Não demorou encontrá-lo. Para o pagamento separou uns dois pares dentre suas incontáveis jóias, facilmente reversíveis em títulos que proporcionariam renda vitalícia que bastasse para uma boa vida como a de um pequeno burguês. O serviço? Ela devia ser severamente agredida. Um nariz irreversivelmente quebrado. Um corte profundo com uma bela cicatriz. Um olho vazado. Qualquer um desses bastava. Dois valeriam um bônus especial. Negócio facilmente acertado. Afinal, homens desse tipo desfiguravam uma pessoa por uma caneca de cerveja. Por uma boa renda, matariam a mulher e os filhos, quiçá a mãe. Caminharam até um lugar desejadamente deserto, para dar cabo da empresa. O brutamontes pôs-se a postos. A jovem retirou o capuz e a capa usados para disfarçar quem era. Feito isso, as borboletas surgiram e seu pó iluminou o ambiente. Sua beleza ergue-se magnífica. O homem ficou estupefato: seu coração sujo nunca havia se deparado com tremenda glória. Permaneceu admirando aquele esplendor. Até cair. Inerte. A jovem não podia crer naquilo. Encheu-se de profunda tristeza e chorou lagrimas brilhantes como um diamante. As mais belas lágrimas já derramadas estavam ali. Ninguém pode admirá-las. A bela moça pensou que não poderia depender de ninguém então para resolver seu dilema. Ninguém conseguiria ajudá-la. O que restava-lhe fazer agora?

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Monotonia

Parecia mais um daqueles dias clichês. A chuva batia no vidro da janela do quarto e eu precisava de todos os meus cobertores para manter-me aquecido. O despertador já havia tocado diversas vezes. Tentei ignorar todas. O resquício da gripe forte me fazia sentir enorme preguiça. O gato estava enroscado na ponta da cama, próximo aos meus pés. Inerte. Em letargia. Tateei o criado-mudo em busca do controle remoto. Ligada, a luz da TV nova não invadiu o quarto como um sol agonizante. A luz azul não apareceu. Só então me dei conta de como a modernidade é fria. Busquei diferentes canais. Resignei-me. Um aparelho frio não seria capaz de aquecer-me o ânimo. Nos livros e filmes, geralmente, dias como esses reservam acontecimentos grandiosos e abruptos. Resolvi esperar então. Passados trinta e sete minutos tediosos compreendi que nada aconteceria mesmo. Levei a mão até o gato para fazer um afago. Ao toque da minha mão ele afastou-se e pulou da cama. Certamente o acontecimento mais interessante daquele dia monótono. Senti sede. Fingi que não sentia. Não tinha vontade de levantar para ir a cozinha. Desliguei a Tv. Colocando o controle de volta ao seu lugar esbarrei os dedos em uma caixa. Meus calmantes. Destaquei e engoli. Seco. Esperei mais alguns minutos e acordei agora. A chuva ainda bate na janela. Para me distrair relembro cada momento do dia anterior. Tento em vão torná-los excitante em palavras. Minha caneta também é enfadonha. Olho para o criado-mudo e vejo que só me restam quatro comprimidos. Meu tempo está acabando. O que fazer quando precisar voltar a viver? Talvez ir a farmácia e comprar mais algumas caixas.

domingo, janeiro 13, 2008

Entrevista

-Por favor, a senhorita pode me emprestar uma caneta?

-O senhor comparece a uma entrevista de emprego sem ao menos trazer uma caneta?

-Está seca. Falhou.

-Aqui está. Não gostamos muito de falhas por aqui.

Começo ruim. Mas que culpa tenho? Não sou agora capacitado porque minha caneta falhou? O que posso fazer? Processar a fábrica de canetas? Alegar que perdi uma vaga por um defeito no produto deles e pedir uma pensão vitalícia?

-Terminei. Aqui está sua caneta.

-Fique com ela, pode precisar. Sempre tenho uma de reserva, para uma emergência. É preciso estar preparado para superar os obstáculos.

-Obrigado.

Vadia. Quer me testar? Se for admitido será minha subalterna. Pensa estar em condição melhor que a minha por ter uma colocação de mercado? Uma colocação de recepcionista?

-Vou pedir ao doutor para recebê-lo. Pode servir-se de água se desejar.

Na bandeja há duas jarras. Uma com água e outra com suco. E uma garrafa de café. Porque me ofereceu somente água? Sirvo-me do café. Está velho, com gosto ruim. Pego outro copo e encho de água. Talvez o suco esteja azedo.

-O doutor irá atendê-lo em poucos minutos.

-Certo, eu espero.

-Alô? A copeira não está? Ela precisa trocar o café, está aqui desde a manhã. Está velho. Passou mal? Filho? E ninguém pode fazer? Pelo menos retirar as garrafas?

Esclarecido o café frio. A copeira nos deixou aqui sem café fresco para cuidar da prole. Como se fizesse diferença. Seus filhos nunca estarão pleiteando uma vaga como a que concorro agora, se sobreviverem.

-Dia cheio não? Essas pessoas inventam muitos problemas para não trabalhar.

-Eu entendo, tenho dois filhos.

-Mas para essas emergências temos babás, empregadas.

-Quem pode pagá-las.

-Ah, elas cobram pouco. Precisam de pouco para manter-se de pé. E sempre se pode contar com as avós também!

-Entendo. O doutor já pode vê-lo.

-Obrigado. É bom trabalhar aqui?

-Para muitos, sim.

-Que bom!

-Vai entender-se bem com o doutor. Seja você mesmo e terá a vaga.

-Obrigado! Você é muito gentil!

Pelo visto a menina não é tão petulante quanto imaginei. Se ficar aqui acho que já arranjei a primeira.