quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Névoa cintilante

Em todas as cortes conhecidas era unanimidade: aquela jovem era a mais linda de todas as damas. E todos os joalheiros e costureiros. E sapateiros. E peruqueiros. E perfumistas. Todos disputavam quem teria a honra de vesti-la. Assim, somava-se à sua beleza natural as mais belas jóias, vestidos, sapatos, perucas e perfumes já vistos. E seu orgulhoso pai reservou um aposento somente para guardar todos esses presentes. E já era preciso um segundo. A própria natureza rendia-se aos seus encantos. A jovem era seguida por lindas borboletas furta-cor, que combinavam com tudo o que ela vestia e deixavam um rastro de poeira cintilante suspenso no ar por onde passavam.

Mas havia um problema. Sua beleza era tal que intimidava os demais. Por isso, eram poucos os que se aproximavam dela. E mais raros os que lhe dirigiam a palavra, ou olhavam nos olhos. Mas ainda assim ela tinha quatro amigas inseparáveis. E tratando-se de uma corte de relações tão aristocraticamente formais, possuir quatro amigas sinceras não era nada mal. Ao contrário. Estava de bom tamanho. Elas também eram belas e talvez isso aliviasse seu temor, ainda que as belezas fossem incomparáveis. Então a bela jovem não sentia tanto a falta de todos os outros. Mas faltava-lhe um amor. E como ela sofreu quando uma de suas amigas viajou para uma corte distante por ter encontrado lá uma grande paixão.

Outro baque foi ainda mais inesperado. O agradável pó cintilante que emanava das maravilhosas borboletas envolvendo-a em névoa majestosa trouxe grave enfermidade a uma de suas amigas. Uma reação sinistra tomou conta da pele da pobre moça, disseminando manchas vermelhas em toda sua extensão que, em alguns pontos, explodia em chagas purulentas. O doutor prontamente proibiu o contato com as borboletas e, temerosas, as demais senhoritas decidiram afastar-se da bela amiga também, mesmo com enorme aperto em seus corações. A bela então se viu mais solitária que nunca.

Ensandecida pela necessidade de amar e contato humano resolveu deixar para trás seus próprios princípios e orgulho. Uma vez que cavalheiros distintos e sérios temiam chegar perto dela, resolveu buscar a cura para a falta de afeto em homens de caráter duvidoso que, no máximo, dar-lhe-iam uma noite de prazeres sórdidos e isentos de sentimentos, sentindo-a enquanto planejavam a próxima conquista. Insinuou-se para todos os empregados. Até os mais repugnantes. Aqueles que ainda possuíam um fio de nobreza em seus corações rejeitaram-na por bondade. Afinal tal beleza não servia ao efêmero. O medo foi o que impediu que os mais asquerosos a deflorassem, afinal, conspurcar a jovem cuja beleza era reverenciada como a mais intocável das sacralidades certamente geraria perseguição implacável. Recusada por todos, a beldade passou uma noite inteira defronte o espelho. Olhou-se. E sentiu-se feia.

Resolveu então se aventurar fora dos limites de sua casa, nas tabernas mais hediondas da cidade. Não buscava o amor. Queria o homem disposto a executar o mais sujo dos serviços pelo preço certo. Não demorou encontrá-lo. Para o pagamento separou uns dois pares dentre suas incontáveis jóias, facilmente reversíveis em títulos que proporcionariam renda vitalícia que bastasse para uma boa vida como a de um pequeno burguês. O serviço? Ela devia ser severamente agredida. Um nariz irreversivelmente quebrado. Um corte profundo com uma bela cicatriz. Um olho vazado. Qualquer um desses bastava. Dois valeriam um bônus especial. Negócio facilmente acertado. Afinal, homens desse tipo desfiguravam uma pessoa por uma caneca de cerveja. Por uma boa renda, matariam a mulher e os filhos, quiçá a mãe. Caminharam até um lugar desejadamente deserto, para dar cabo da empresa. O brutamontes pôs-se a postos. A jovem retirou o capuz e a capa usados para disfarçar quem era. Feito isso, as borboletas surgiram e seu pó iluminou o ambiente. Sua beleza ergue-se magnífica. O homem ficou estupefato: seu coração sujo nunca havia se deparado com tremenda glória. Permaneceu admirando aquele esplendor. Até cair. Inerte. A jovem não podia crer naquilo. Encheu-se de profunda tristeza e chorou lagrimas brilhantes como um diamante. As mais belas lágrimas já derramadas estavam ali. Ninguém pode admirá-las. A bela moça pensou que não poderia depender de ninguém então para resolver seu dilema. Ninguém conseguiria ajudá-la. O que restava-lhe fazer agora?