domingo, novembro 01, 2009

Cores

Vem uma sensação de enjôo marítimo. Um embrulho no estômago. Poderia culpar meu almoço. Se houvesse um almoço. Nada entrou em meu estômago hoje que agora estaria em litígio comigo. O vento bate no meu rosto. Aquela sensação gostosa de sentir o cabelo dançando no ar. Não. Não é a viagem. Uma viagem tranqüila de quinze minutos não me causa o enjôo. Um pequeno percurso de barca não traria tanto desconforto. Ao contrário, sempre senti prazer. Fumar um cigarro na popa, sentindo o vento e observando o rastro de espuma na água. Mas por que a sensação? Como se alguma coisa quisesse pular para fora de mim? Expelir-se? Não consigo lembrar nem um único problema recente que me levasse a isso. Não acabei de terminar um relacionamento. Não briguei com ninguém. Não estou ressentido. Nem magoado. Ou insatisfeito. Nada. Mas a sensação só cresce. Atormenta. Irrompe.

Acontece.

Caído no chão. Ninguém por perto para ajudar: a barca está quase vazia, e eu aqui sozinho nos fundos. Com as mãos em uma poça de vômito que escorre pela tábua de madeira e goteja junto à espuma. Começo a rir. A baía já não é poluída o suficiente? A sensação ruim foi toda embora. Enjôo marítimo mesmo. Uma primeira vez para uma coisa improvável. Como é estranha a primeira vez. Mas felizmente não deve acontecer mais. Sinto-me bem agora.

De novo.

Estupefato. Outro jato. E mais outro. Ainda havia alguma coisa para sair. Alguma coisa que me faz mal. Tento levantar dessa vez e não consigo. Tudo está estranho. Sem cor. Isso está começando a ficar sério. A poça é vermelha agora. E verde, amarela, azul. Não me lembro de ter comido um arco-íris. E só agora com o rosto molhado pelo próprio líquido expelido percebo. Não é nojento. Não tem cheiro ruim. Cheira a tinta. Tinta fresca. E o mais estranho é que são as únicas cores que vejo. Todo o resto é cinza. Isso não tem como estar acontecendo. Melhor me sentar, acender um cigarro e esperar acordar.

E assim foram mais cinco. Não náusea. Cigarros. Mais cinco cigarros e não acordei. E também ninguém passou por aqui. Na verdade percebo que a viagem está demorada. Mas olhar no relógio me mostra que só se passaram cinco minutos. E as cores não voltam. A não ser as que restaram espalhadas no chão. E se eu comesse tudo de volta? Tudo voltaria ao normal? A idéia me parece nojenta também, mas nada até agora aconteceu de forma muito normal. Quem sabe assim o sonho não acaba logo? Vamos lá. Coragem! Só passar o dedo, molhá-lo e experimentar. E vamos ver se dá certo. Lambo os dedos de olhos fechados. Abro devagar. Ainda cinza.

Mas espere!

Sim, está pálido. Quase imperceptível. Mas há alguma cor. Em desespero começo a lamber todo o assoalho. E surpreendentemente melhoro aos poucos. Os tons mais detalhados retornam. Mas ainda falta alguma coisa. E já bebi tudo de novo. O que terá se perdido? Ou será... O restante que escorreu pelo mar? Isso está faltando? As gotas que se misturaram com a espuma conforme a barca andava e empurrava a água para trás? Em seu lento deslocamento? Bem se for isso posso tentar me jogar na água e beber o máximo que conseguir. Isso se eu soubesse nadar. Mas temos coletes aqui. Mas... Algumas gotas já não teriam sido completamente absorvidas pela água? Diluídas? Com certeza. Mas como isso termina? Terei que aceitar continuar sem as cores que perdi no meio do caminho? Por motivos que nem sei explicar? A única opção a isso é me aventurar nas águas. Com a possibilidade de não resolver meu problema. Ou me afogar. Olho mais uma vez no relógio. A viagem já dura dez minutos. Acendo então mais um cigarro. Tenho muito que pensar no pouco tempo que me resta.