segunda-feira, outubro 26, 2009

Indiferentes

Já perdi a conta de quanto tempo permaneço aqui acordado contabilizando as coisas no quarto. Não lembro em qual recontagem estou, mas continuo. No criado mudo, um cinzeiro, cigarros, isqueiro, um copo agora vazio, um livro e um lápis para fazer anotações, algumas moedas. Na cama, além de mim, os lençóis, o travesseiro. Um cabideiro repleto de roupas. A luz que entra pela janela anunciando que o dia já recomeçou. E essa é uma informação nova. O recado é que meus artifícios não surtiram efeito. Não dormi toda a noite, apenas fiquei contando coisas, desperdiçando pensamentos em funções sem sentido. E o dia anunciado avisa que é necessário recomeçar a rotina. O que será que as outras pessoas fazem em suas noites insones? Pensam em que? Em suas vidas? Seria uma oportunidade interessante em fazer essa reflexão a que tão pouco dedicamos tempo. Talvez por medo da carência de sentidos. Talvez por haver coisa melhor a fazer. A velha história de que a vida foi feita para ser vivida. Então por que pensar nela. Talvez por preguiça apenas. E afinal não é essa a responsável pela maioria das coisas que deixamos de fazer? Por essa última consideração decidi que é a resposta mais aceitável. Ou ao menos a menos dolorosa. Pois apenas imaginar que ninguém desperdiça muito tempo pensando em sua vida por medo de não encontrar sentido é mesmo muito triste. E agora prefiro não pensar assim. Pelo menos não depois de uma noite em claro.
Mas espere. Mais uma vez estou aqui divagando e fugindo da pergunta inicial!
Em que as pessoas pensam quando estão com insônia? Principalmente se precisam trabalhar no dia seguinte e precisam desesperadamente dormir. Porque ao longo do dia sentirão um sono incontrolável. E tomarão altas doses de café ou chá, o que preferirem. Ou refrigerante. Guaraná. Anfetaminas. Cada um resolvendo-se com o que tem ou pode, com um fim comum: não dormir em cima da mesa. Evitar o constrangimento e as piadas dos colegas. Ou mesmo uma repreensão do chefe. Demissão quem sabe. Porque alguns empregos são muito rígidos, não é verdade? Olhando no relógio agora percebo que já se passaram vinte minutos desde que me perdi nesses pensamentos. Se continuar assim vou perder a hora para o trabalho. Trabalho. Trabalho? Ora! Acabei de passar uma noite sem dormir. Como posso trabalhar nessas condições? Decidido. Hoje não pegarei o metrô. Nem andarei pela rua. Nem comprarei um café ou cappuccino, dependendo do quanto de moedas eu eventualmente tenha no bolso. Nada de elevador ou cartão de ponto. Crachá. Não vou esperar pela compreensão do chefe irritado. Desconte o dia não trabalhado. Estou convicto do motivo da insônia. Bebedeira? Antes fosse. Um sinal de vida social. Nada disso! Aborrecimento, estresse, fadiga. Quem é culpado disso além do próprio trabalho? O trânsito, as contas? Não teria tais problemas se não trabalhasse. Só a despreocupação enlouquecida de um morador de rua. Isso mesmo. Nada de trabalho para mim hoje. Tirarei um dia para mim. Recuperar as forças. Passear, ver televisão e dormir à tarde. Um autêntico domingo merecido. Mesmo porque nesse domingo tive que visitar minha mãe. A diversão e o descanso não me sorriram. Mais vinte minutos se passaram. Bem, até eu sair agora, chegaria atrasado mesmo.
Café da manhã demorado, horas no chuveiro. Imagino um ecologista batendo na porta falando de recursos esgotáveis. Risadas. Que a água se esgote. Não será hoje mesmo. Hoje quero passar horas embaixo do chuveiro. Até os dedos enrugarem. O barulho da água batendo na cabeça, com os olhos fechados, não é uma delícia? Paz deliciosa. Silêncio absoluto e ruidoso. Deliciosa água quente escorrendo pelo corpo. Deliciosa água. Fria? Grito. Disjuntor desarmado. Muito tempo com o chuveiro elétrico ligado. O ecologista na porta ri de­ mim agora e vai embora satisfeito. Ao menos já está num bom horário para avisar que não trabalharei. Isso necessita de um cálculo muito complicado. Por exemplo, se vai alegar uma emergência, doença na família e coisas do tipo, alguém ligaria pontualmente no horário de entrada? É claro que não. Quem se lembra do horário do trabalho com a mãe no hospital. Melhor ligar ao meio dia. A lembrança só veio horas depois. Porque seu problema era realmente gravíssimo. Mas vou alegar indisposição. Então ligarei poucos minutos depois. Dizendo que se melhorar eu irei. Mentira. Todo chefe quando ouve isso já deve ter em conta que terá um funcionário a menos o dia inteiro. Telefone do escritório. Nada. Ninguém atende. Maldita secretária. Nunca chega no horário. Telefone do chefe.
­Alô?
O que você quer comigo hoje a essa hora rapaz?
Eu queria só avisar que... Como assim hoje a essa hora? São apenas oito e meia senhor.
Isso mesmo. Oito e meia da manhã de sábado. O que você quer?
Nada. Nada demais. —Sábado?
E você me acorda para não me falar nada demais? Você bebeu?
Não! Quem me dera. É que tenho uns trabalhos pendentes. Tudo bem se eu aparecer lá para resolver isso hoje?
Ah! Era só isso? Já não te falei que nem precisam me avisar se precisarem ir até lá fora de horário? Fique a vontade! Abraço e não vá perder o sábado inteiro trabalhando!
Tchau senhor! E desculpe o incômodo.
Às vezes minha vida parece um insuportável clichê. Já estou de banho tomado mesmo. Vou trabalhar no sábado. Meus dias são tão indiferentes.

Mais um dia acordou

Mais um dia acordou, bebeu a água que havia deixado no criado mudo na última noite para uma sede noturna. Ele nunca acordava a noite mesmo. Servia sempre para o desjejum, que sempre era acompanhado pelo cigarro. Levantou até a cozinha para preparar uma jarra de café enquanto lia uma revista velha. Mas naquele dia havia um som estranho. E não era o aparelho de som que havia esquecido ligado, como acontecia com freqüência. Havia um pássaro na janela. A melodia era agradável. Na verdade não se recordava de jamais ouvir um pássaro cantar daquela forma. Natural. Coisas da vida na cidade grande. Lembrou por um momento dos parentes do interior, mas logo percebeu que o café estava pronto. Sem açúcar. Duas xícaras.
Já pronto para sair, chaves, telefone e carteira no bolso, pegou o pão esquecido na torradeira para comer enquanto descia pelo elevador. O porteiro como de costume não estava ainda na portaria. O preço do condomínio devia ser reduzido. Assim como o salário do senhor preguiçoso. Acenou para o primeiro táxi: vamos pegar a ponte. Corrida normal, pouco trânsito. Na subida da ponte abriu a janela para sentir o vento no rosto e acabou cochilando.
Acordou. Sentiu um cheiro de queimado. Assustado deu um salto para fora da cama e correu para vasculhar toda a casa. Chegando à cozinha, suspiro de alívio. Havia esquecido a cafeteira ligada. Na jarra um torrão preto no fundo. O alívio deu lugar ao aborrecimento. Seria um problema limpar aquilo. Mas certamente a preguiça o obrigaria a comprar uma jarra nova. Não era a primeira vez que isso acontecia. O que causou certo estranhamento. Aquilo não era o suficiente para deixar a casa com tamanho cheiro de queimado. Deu mais uma busca pelos cômodos. Nada. Relaxou. Seguindo a rotina, tomou seu banho e só depois fumou seu primeiro cigarro do dia. Riu pensando que só assim para demorar tanto para começar a fumar. No quarto achou o copo que havia deixado no criado mudo e despejou a água na pia do banheiro.
Já no elevador teve que voltar ao apartamento, pois havia esquecido o telefone. Praguejou. Era mesmo seu passatempo favorito. Na portaria cumprimentou o porteiro, que por algum milagre havia acordado no horário correto e já estava trabalhando. Logo que pôs os pés na rua avistou um táxi. Ensaiou uma pequena corrida acenando para o motorista parar. Mas nesse momento olhou para o chão e viu um pombo morto. Na tentativa de desviar para não começar o dia pisando em um cadáver nojento, acabou torcendo o tornozelo. Caiu. A cabeça, de encontro a um hidrante. Desmaiou com o impacto.
Dor. Isso era tudo o sentia quando acordou. E não conseguia respirar direito. O ar parecia vermelho. Estendeu a mão para o lado procurando o copo de água que sempre deixava no criado mudo, mesmo com a visão turva e sem ter certeza de onde estava. O ato desconexo só fez deixar cair o copo, assim como o frasco de remédio para dormir que havia tomado na noite anterior. Dois, para garantir. Mas não foi só isso. Também sentiu enorme dor nas mãos. Olhando para as mãos cerrando os olhos para conseguir focalizá-las, percebeu que estavam muito feridas. Olhando para o resto do corpo percebeu o mesmo. Os efeitos do remédio pareciam não ter passado. Sentia-se em um estado de torpor desesperador. O céu realmente estava vermelho. Repleto de labaredas. Cigarros acesos na cama. Era bom fumar enquanto o remédio não fazia efeito. Tentou levantar e correr. Gritar. Mas não conseguia. Não sabia se pelas queimaduras ou pelo efeito químico que buscou para dormir. Ficou ali deitado. Tentando mover-se, só conseguindo uns gestos tortos. A dor parecia aumentar. Ficava mais difícil respirar. O ar vermelho parecia tornar-se negro. Os remédios. Tomar mais uns quatro comprimidos seria a solução. Mas não era possível. Havia deixado cair no chão. O ar insalubre fez com que fosse perdendo a consciência.
Ali mesmo ele morreu. Dizem que se sufocou com a fumaça antes de morrer pelas queimaduras, o que deve ter diminuído sua dor. O quarto foi consumido pelo fogo. No enterro, sua mãe chorou agarrada a um pequeno pedaço de tecido. Um pequeno pedaço sobrevivente de um quadro que havia pintado para seu filho e que ornamentava o quarto dele. Um ninho de pássaros para ele lembrar-se de seus parentes do interior.