terça-feira, abril 25, 2006

Do alto daquela torre

Ninguém sabe quem mandou erguer aquela torre com aquela aparência tão inóspita. Se foi o rei, ou seu pai, ou seu avô, ou quantas gerações atrás. O que importa é que houve o dia em que uma pessoa encontrou naquele lugar sua casa. Mas não. Não sabemos se aquilo era uma casa, uma clausura, uma prisão, ou todas essas coisas juntas. Não sabemos ao certo. Mas a princesa morava ali, isso sabemos. Mas se fazia isso por imposição ou vontade própria também não sabemos... Paremos então de dizer o que não sabemos antes que essa história acabe se tornando um grande caminho de dúvidas, pois algumas coisas aconteceram naquele lugar, e essa é a parte que nos interessa e acreditamos merecer serem contadas.
Aquela princesa não era exatamente o modelo de princesa que muitas fábulas contam: não era a mulher mais bonita daquele reino. Ainda que, justiça seja feita, possuísse certa beleza sim, não era conhecida por isso. E não poderia mesmo. Até porque foram poucos aqueles que a viram, e em menor número ainda eram aqueles que tiveram a oportunidade de contar o que viram. Seu pai, o rei, certamente foi um desses últimos. Sua mãe não. Morreu ainda no parto, sem ver seu rosto. Sua madrasta, que não era má, não tinha permissão para vê-la. Mas os poucos que a viram revelaram que ela tinha uma semelhança com uma princesa de outro conto: possuía tranças enormes, mas de cabelos castanhos.
Acontece que os anos se passaram, e o rei um dia viu-se preocupado com a solidão da filha. Passava os dias só, sem muito que fazer. Seu maior passatempo era um tanto peculiar. É claro que, preocupado com a instrução da filha, o rei mandou deixar ali muitos livros. Cada um teve sua devida dose de interesse, que não durava muito. Mas um em especial lhe rendeu bons frutos. Era um livro de ciências ocultas, bruxaria, feitiçaria, ou como quiser que se chame. Um encantamento lhe despertou especial interesse: conseguiu dotar um espelho com a faculdade de mostrar cenas do mundo exterior. Porém, como a princesa era apenas uma iniciada naquelas artes, o espelho emitia imagens um tanto distorcidas, que destoavam um pouco da realidade. Uma imagem falseada da realidade parecia-lhe muito mais interessante que a realidade, assim como achava os romances mais interessantes que os livros de história, mesmo havendo quem diga que são a mesma coisa. Enfim, esse era seu maior passatempo, mas para seu pai não era o suficiente. Já havia passado da idade em que as meninas da corte habitualmente se casavam, então resolveu conversar com ela.
-Filha, não desejas conhecer alguém para passares o resto de tua vida?
-Meu pai, eu aceito conhecer uma pessoa do mundo, mas não aceito imposições. Manda-me um homem então, para que conviva aqui comigo. Se aceitá-lo, casar-me-ei com ele. E não digo mais nada para ti que não seja um sim de aceitação do compromisso.
O pai então saiu feliz, pois acreditava estar solucionado o problema. Chamou o filho mais velho do duque de um reino próximo, e ele aceitou estar com a moça. Quando chegou lá, o filho do duque tentou logo se mostrar muito cortês, fazendo uma reverência em que quase tocou o chão. A jovem princesa deu de ombros e não se interessou muito por isso. Como vivia sozinha, não se importava muito com aquelas formalidades. Nos dois primeiros dias, não lhe dirigiu a palavra. Depois desse tempo mostrou-se mais receptiva. O jovem nobre começou a achar a princesa muito agradável. Passavam muito tempo assistindo juntos ao espelho. Mas com o passar dos dias, não entendia porque começou a sentir-se incomodado com as palavras dela. Sentia-se sufocado, como se dos lábios dela saísse vagarosamente alguma substância que o tornava incapaz de respirar. Um dia, inexplicavelmente para ela, ele teve um impulso e jogou-se pala janela da torre. E despencou lá embaixo, completamente morto. Tinha a aparência de um morto por afogamento. A jovem não entendeu exatamente o que havia se passado, logo agora que se afeiçoava ao rapaz e estava próxima de declarar o seu sim. O rei entendeu menos ainda, e precisou de toda a sua habilidade diplomática para não deixar o incidente tornar-se uma guerra. Resolveu então que o próximo candidato (sim, deveria existir um segundo rapaz) não deveria ser da nobreza, para evitar que novos acidentes ocorressem.
O segundo rapaz era um membro da corte, mas de menor importância. Tudo ocorreu como da outra vez, à exceção de que ela demorou três dias para dizer-lhe a primeira palavra, talvez ainda traumatizada com o evento anterior. Passados esses dias, entenderam-se muito bem, assistiam ao espelho. Curiosamente, esse rapaz também foi acometido do mesmo surto estranho do anterior e jogou-se pela janela, morrendo também com os olhos esbugalhados e a boca aberta, como um náufrago. Como a menina mostrou-se muito triste e pediu ao pai que trouxesse outro rapaz, o rei decidiu trazer o terceiro. O quarto já foi por questão de honra. E o quinto, e o sexto. Quando, por volta do décimo quarto rapaz, pressentia que, se continuasse naquele passo, em breve não haveria mais corte, o rei decidiu recrutar os rapazes entre a plebe. E passaram por ali tantos rapazes que até perdemos a conta de quantos foram. Todos se jogavam pela janela e morriam com cara de afogados.
Até que veio aquele rapaz. Nada de especial. Apenas como não era muito atlético, não conseguiu correr dos guardas recrutadores como faziam muitos jovens. É claro que já imaginam que a essa altura a princesa era conhecida como viúva negra (mesmo sendo uma viúva que nunca se casou) e outros nomes pejorativos. Pelo mesmo motivo que foi pego, não foi capaz de reagir quando jogaram-no no quarto da princesa. Esse rapaz teve sorte, pois ela falou com ele logo no primeiro dia, ainda que não tenha sido um privilégio exclusivo seu. Como de costume ela gostou bastante dele, e ele dela. Conversavam e assistiam o espelho. Ele não gostava muito das cenas do espelho, mas gostava de suas conversas. Mas logo veio a sensação de mal estar causada pelas palavras da jovem. Aquele rapaz, franzino e de semblante tão pacato, foi o primeiro a ter uma reação inesperada: em um arroubo de loucura ergueu o espelho no ar e bateu com ele violentamente na cabeça da jovem princesa enquanto ela falava. A jovem caiu desacordada, o espelho em cacos. Mas a sensação diminuiu muito pouco, ele já estava contaminado demais. Mas foi o suficiente para que, antes de se jogar pela janela, o rapaz percebesse as tranças da princesa esparramadas pelo chão. Jogou-as então pela janela, intencionado a descer por elas como na história que ouviu quando criança. No entanto, assim que começou a descer pelas tranças, não ousando olhar para baixo, percebeu que elas não iam muito além de dois palmos abaixo da janela. Ele riu e pensou alto:
-Esta é a diferença da realidade para o que vemos em um espelho.
E soltou as mãos.
Feito isso, seus pés atingiram o chão em menos de um segundo, e estranhou ser tão rápido, e que a morte fosse tão parecida com a vida. Olhando para o que acreditava ser o chão, viu que estava pisando em uma pilha de cadáveres que ia até a base da torre e que poderia ser facilmente descida. Assim o fez, lamentando a sorte daqueles tantos rapazes que, entretanto, tornaram-se a sua própria sorte. Olhando para cima viu a princesa na janela, com o rosto tingido de vermelho, que pareciam daquela distância lágrimas sinistras. Comovido com sua aparência triste, gritou:
-Vem!
Mesmo sem saber se ela podia ouví-lo.

quinta-feira, abril 20, 2006

(re)adAPTAção

Ela era uma pessoa normal. Uma pessoa normal que pagava a TV a cabo e não tinha plano de saúde, como todas as outras. Tinha uma casa e um emprego que lhe bastava para pagar as contas. Tinha apenas um problema. Mas não. Seu problema não era dificuldades na vida sentimental, apesar de todas as histórias de pessoas bonitas e bem sucedidas tratarem de seus problemas sentimentais. Na verdade poucas vezes ela era vista sozinha. Namorados não eram seu problema. E não digo somente em quantidade. Todos eram muito bons para ela e amavam-na bastante. Bem, falamos de um problema, certo? Exagero certamente. Não era exatamente um problema. Uma particularidade seria mais bem dito.

Quando eu a conheci, e eu não sei quanto tempo fazia que tudo tinha começado. Era uma mulher bonita, e não deixou de ser nem no final, que usava roupas de grifes famosas, bolsas combinando com os sapatos impecavelmente, cabelos rigorosamente alinhados pela escova feita diariamente, não ia sequer à esquina comprar pão a pé, mas sempre de carro. Para definir em uma palavra, era o que se chama comumente por “patricinha”. Só percebi a mudança quando terminou o seu relacionamento. Não passou muito tempo e começou a se envolver com um homem muito culto. Logo começou a ler Nietszche, Foucault e outros autores que as pessoas adoram citar para mostrarem-se inteligentes. Ela quer impressioná-lo – pensei. Já é tempo de dizer que ela se chamava Amanda, e ele a chamava de Danda, apelido que eu achava terrível, mas não era da minha conta. O relacionamento não durou muito.

Logo em seguida veio o outro. Com ele vi as coisas modificarem-se mais. Começou a curtir músicas novas, como as que ele ouvia. Ela passou a freqüentar lugares diferentes. Seu cabelo mudou de cor, começou a usar munhequeiras no lugar do relógio caro, tênis All Star no lugar do scarpin, camisetas estilosas e calças mais descontraídas. Transformou-se no que podemos chamar de “alternativa”. O rapaz aparentemente compartilhava da minha falta de apreço pelo apelido Danda, e passou a chamá-la de Dinha. O novo apelido não era tão melhor assim, como em geral não são nenhum desses diminutivos de nome, mas mais uma vez não era da minha conta. Esse relacionamento durou bastante tempo. Percebi que os livros do Foucault e do Nietzsche nunca mais foram lidos. Inclusive ouvi dela certa vez que eram muito chatos, mas tempos atrás lhe eram muito interessantes. Achei engraçado como ela se adaptava tanto a cada um dos seus relacionamentos. Engraçado porque seria burrice criticar um ser humano por ser adaptável, afinal é o que nos faz o que somos e não vou entrar aqui no mérito de se o que somos é bom ou ruim.

O namorado seguinte resultou em uma mudança mais radical que a anterior. Transformou-se praticamente em uma hippie: fumava maconha, tornou-se vegetariana, amava a natureza. Saiu de sua casa no Catete e foi morar em uma república instalada em um casarão em Santa Tereza. Dinha tornou-se passado, era chamada de Bina agora. Esse foi o momento quando percebi que mais do que roupas e gostos, ela modificava-se ainda mais profundamente. Comecei a perceber que sua própria personalidade mudava também. Mas nesse momento ainda estava cercada por pessoas que eu considerava legais, portanto essas mudanças não me atingiam muito. Na verdade isso aconteceu com o homem que veio depois, um empresário de muitos recursos. É claro que ela enfim deixou de freqüentar os lugares que eu freqüentava, então a partir daí comecei a vê-la muito menos. E quando tornei a vê-la foi um certo choque, o nariz arredondado havia se tornado pontudo e empinado. Seu nariz nunca havia sido grande, mas agora era tão fino que realmente chamava muita atenção. E o mais importante, quando tentei dar um abraço para matar a saudade fui recebido com certo desdém. Fiquei chateado, mas compreendo que quando as pessoas se afastam muito fisicamente, acabam tornando-se estranhas à vida afetiva dos outros, mesmo tendo tido uma relação anterior da mais intensa amizade. Ah, e agora chamavam-na por Babi. Foi aí que tive pela primeira vez a dificuldade de lembrar do seu nome verdadeiro. E a partir daí ela começou a ter dificuldades para lembrar de qualquer um dos nomes que eu pudesse ter. Conheci ainda a Fifi, a Fefa, a Lê, a Leca, a Teca. A Tiça curiosamente lembrou-se mim, apesar de eu não conseguir reconhecê-la. Isso porque depois de todo esse tempo além do nariz, a boca, a testa, os seios, o maxilar e mais alguma coisa que não consegui detectar já haviam sido reparados pelo bisturi. Não preciso dizer sobre os cabelos, porque eles já mudavam desde tempos que nem me recordo mais. Certo dia desses um amigo em comum contou-me que ela declarou-se lésbica, e namorou duas meninas. Não quis saber por qual nome ela atendia agora. Isso realmente me confundia. Na verdade algumas vezes eu pensei tê-la visto na rua, mas não tive coragem de tentar conversar com ela. Não tinha mesmo muita certeza de que era ela.

Semana passada, quando já fazia então muitos anos que não a via, estava vendo algumas fotos antigas. Ela estava presente nas minhas fotos até ser Bina, ou Babi, algo parecido. Era como se eu estivesse com uma pessoa diferente em cada uma delas. Quanto a mim, se passasse as fotos rapidamente, ia formar-se uma animação grotesca, cabelos sumindo e rugas brotando exatamente onde se podia esperar que aparecessem. Toda minha vida pareceu-me uma novela muito previsível, como todas são. Mas a novela da vida da Dinha, ou Fefa, parecia um filme de vanguarda, cheio de cortes inesperados. Mas eu não a invejo, pois sei que um dia ela se cansará das mudanças, se é que já não se cansou, e buscará um lugar onde se agarrar para permanecer ali até o fim. Isso acontece mais cedo ou mais tarde, mas com uma diferença fundamental: ela talvez não se lembre mais o que é quando resolver fazer a roda parar de girar. Eu talvez possa nunca ter descoberto o que sou ou poderia ser. Qual opção é mais vantajosa? Certamente não sei. Afinal, alguém pode voltar para ver a diferença?

domingo, abril 16, 2006

Velha rotina

O dia realmente havia começado da forma mais ordinária possível. O relógio despertou três vezes. Ele resmungou bastante enquanto se levantava. Foi ao banheiro, lavou o rosto, urinou. Tomou uma xícara de café e comeu uma fatia de queijo branco. Vestiu-se com pressa depois do banho e saiu. Voltou para verificar se havia fechado as janelas da sala. Foi caminhando pela rua até a estação do metrô cantarolando. Cantava baixinho, é claro, e durante os intervalos entre cada trago. I got no style. I’ll take my time. A fumaça era suave e o sabor do tabaco tostado era doce. Dentro do metrô leu algum livro banal - tinha resolvido que era inútil estudar ali, pois não conseguia fazer anotações. As pessoas esbarrando o incomodavam. Apenas mais um dia comum, como foram todos os anteriores e como os futuros também haveriam de ser.

Mas não. Não vamos revelar agora que naquele dia aconteceu algum evento extraordinário. Pelo menos não enquanto caminhou até o trabalho ou durante as horas que passou lá, sentado e atento, em sua atividade enfadonha – e todas elas causam enfado, por mais interessantes que pareçam ser, se são obrigatórias. Também não aconteceu nada durante o almoço, quando seus colegas demonstravam o habitual falso interesse pelas suas conversas. E ele revirava um ou outro legume que achava ruim, e colocava no cantinho do prato. Nem mesmo durante sua volta para casa aconteceu nada. Ele somente voltou para lá. Fez o caminho mais longo, para pegar um ônibus. Não voltava de metrô, que ficava muito cheio naquele horário. Passou em frente a uma banca de jornal onde viu algumas revistas. É certo que ele não fazia isso todo dia, mas, considerando a freqüência, já caracterizava uma rotina, ou uma rotina alternativa. Saltou dois pontos antes de sua casa para fumar mais um cigarro enquanto caminhava. E isso ele fazia sempre.

E dormiu. Viu televisão e ouviu música antes, é verdade. A warming trend, a gentle friend. A man must build a fortress to defend.

Algumas vidas estão destinadas a isso: são ordinárias. E serão. Mas então qual o sentido de contar o dia tão tedioso desse homem? Uma mensagem de pessimismo? Moralismo? Não. E nem uma lição também. A vida dele era só isso mesmo. Ponto. Não há moral nessa história. Só uma única peculiaridade. Ou talvez curiosidade seria mais apropriado? Enfim, o fato é que uma única vez ele não compareceu ao trabalho: ligou dizendo estar doente. Todos acreditaram, é claro! Porque ele mentiria? No dia seguinte ele compareceu normalmente, saudável. Aquele foi o único dia de sua vida quando os outros ali não podiam ter certeza exata do que ele havia realmente feito. Bobagem? Talvez. Mas mesmo algumas bobagens às vezes assustam um pouco. Mas o estranhamento logo se desfez enquanto o encontravam dia após dia. E aquele dia foi até esquecido, talvez até por ele.

Até que ele se aposentou e pouco tempo depois veio a falecer. E eles haviam feito uma bonita festa de despedida e seu enterro teve algumas bonitas coroas de flores, com dizeres bonitos também. Pois é assim que terminam todas as histórias dos homens. Tenham eles tido vidas fantásticas ou ordinárias. E não há nada de novo nisso.

sexta-feira, abril 14, 2006

Início...

Minha proposta inicial para o Contos Afins era de um fanzine literário impresso. Como meus fanzines sempre privilegiaram as HQs, queria me atrever a entrar em uma área nova. Mas produzir um fanzine demanda um tempo que não possuo e um custo elevado (xerox, postagem, etc.). Para que a idéia não morresse, decidi transformar o Contos Afins em um zine virtual. Como trata-se basicamente de textos, o blog torna-se uma ferramente eficiente.
Aproveito para convidá-los a enviar seus textos para publicá-los aqui, caso desejarem.
E começa.