quinta-feira, outubro 12, 2006

Trilha

Consegui atingir uma clareira. A grama baixa e macia faz contraste com a vegetação fechada pela qual caminhei para chegar até aqui. As arvores alinham-se em formato de elipse, eu ao centro. Olhando para uma das extremidades consigo distinguir a forma do lugar para onde me dirijo. O contorno é pouco definido, mas suficiente para apontar a direção que devo seguir. Chegando próximo às arvores vejo uma trilha que segue em direção ao meu destino. A trilha segue por apenas uns cinco metros, bifurcando-se em três caminhos. Observando o meu destino que se ergue ao longe a partir da trilha original, ele parece estar voltado um pouco mais à esquerda. Pela lógica, então, decido pegar a bifurcação da esquerda.
A trilha da esquerda é agradável, coberta de pequenas flores amarelas com folhas de um verde muito vivo, formando um tapete pelo qual vou seguindo. Em um certo momento, surge ao meu lado direito um riacho estreito que corre muito rápido. O som das águas é delicioso. Ando feliz. Depois de andar por bastante tempo, aproveito as águas do riacho para me refrescar: lavo o rosto, mato a sede. Renovado para seguir adiante. Mas em um dado momento, percebo que já havia andado o suficiente para, pelo menos, avistar meu destino. Paro um instante e olho para trás. As flores amarelas tornaram-se vermelhas por onde passei. Aproximo-me e abaixo para observá-las. Parecem tingidas de sangue. Retiro uma das flores e percebo que em seu caule existem muitos espinhos, muito pequenos. Só então olho para os meus pés e percebo que eles estão feridos até o tornozelo. Mas não sinto dor alguma. Olho atentamente para a flor em minha mão e me dou conta de que a ponta dos dedos que a seguram estão dormentes. Levanto-me. Já havia andado tempo demais para retornar e, mesmo com esse incidente, o caminho era maravilhoso. Além do mais meus pés não incomodariam enquanto estivesse caminhando pelas flores amarelas, ainda que elas o ferissem cada vez mais. Continuo seguindo o caminho. O riacho dobra à direita e desaparece subitamente. Alguns metros adiante, as flores amarelas tornam-se mais esparsas e o caminho se abre. Vejo-me então de volta à clareira. Andei em círculo por um longo tempo.
Cansado, deito-me um pouco na grama macia antes de tomar outro caminho. Aos poucos o efeito anestésico das flores amarelas passa e começo a sentir muita dor nos pés feridos. Decido que é melhor levantar e voltar a caminhar antes que a dor me domine e retire meu ânimo. Como a lógica me mandou para uma via enganosa, seguirei agora pela direita. Esse novo caminho logo não se mostra muito agradável. O capim bate quase à altura de meus joelhos e incomoda minhas feridas. As copas das árvores curvam-se sobre mim deixando cair alguns cipós que batem em minha cabeça. Não ouço mais o riacho. Pouco mais à frente, avisto uma cabana. Talvez o morador possa indicar-me o caminho correto ou dar-me algum remédio. Bato na porta e ela abre-se sozinha. A minúscula cabana está vazia. É um cômodo bastante sujo, com cheiro desagradável. A única mobília é uma cama grande. Exausto recosto-me nela. Acabo deitando e adormecendo.
Acordo reconfortado. Por uma pequena janela vejo que o sol brilha entre as folhas das árvores. Certamente passei a noite ali. Meus pés pararam de doer. O cheiro do local é insuportável. Levanto e resolvo ir logo embora. Na saída vejo repousado ao lado da porta um facão. O objeto limpo, reluzente, com um cabo bem trabalhado em couro trançado, pedrarias e madrepérola, contrasta com aquele lugar. Levo-o comigo, para resolver o problema do capim alto e dos cipós que encontrei nessa trilha desagradável. Assim que saio da cabana, me lembro de como aquele caminho era terrível e resolvo não seguir adiante, mas retornar e tomar a trilha do meio. Com o facão vou abrindo caminho pela vegetação e os pés curados me dão novo fôlego.
De volta á clareira sigo depressa pelo caminho do meio. Por ele sigo pisando a mesma grama macia da clareira. Algumas flores amarelas estendem-se à esquerda e posso ouvir ao longe o som do riacho correndo. Era também um caminho agradável, como o primeiro. Ando por ali por algum tempo sem me cansar. Mas por mais que eu ande ainda não consigo avistar o meu caminho. Nesse momento em que começo a encher-me de dúvidas, vejo um pássaro castanho, rechonchudo, acompanhando-me, pulando pelos galhos das árvores. Acho engraçado aquele pássaro gorducho com aparência de bobo saltitando. Mas fico muito feliz com sua companhia e conversamos bastante. Ele respondendo com piados estridentes. Desfruto de sua presença agradável por um tempo que não consigo medir, dado a felicidade em que nos encontrávamos. Até que de repente ele levanta vôo desengonçado. Pousa em meu ombro. Esfrega o bico em meu rosto. Vai embora.
Torno a estar sozinho e começo a sentir-me triste. Continuo caminhando. Sinto-me aborrecido. Segui por tantos caminhos e, mesmo nesse último, não consigo atingir meu objetivo. A trilha segue infinitamente. A grama curta e macia e as flores amarelas à esquerda já se tornaram monótonas. O som do riacho desapareceu quando poucos metros atrás ele cruzou o caminho me forçando a atravessar suas águas rápidas para continuar. As pernas molhadas até as canelas. O pássaro castanho deixou de me acompanhar e foi embora. A saudade é enorme. O facão é um fardo nesse trecho em que não há vegetação que feche o caminho. Sento-me no chão. Não vejo nem a sombra de meu destino em minha frente. Novamente a trilha segue sinuosa em minha frente, e quanto mais procuro aproximar-me, a distância parece aumentar. Não é exatamente uma novidade. Errei o caminho novamente. Isso tudo já está tornando-se uma constante irritante. Desisto. Aguardo. Aguardo alguma coisa. Qualquer coisa. Mesmo sabendo que dificilmente encontraria algum viajante rumando essa trilha, a menos que esteja tão perdido quanto eu. E que esse viajante então não seria de grande ajuda. A solidão naquele lugar é certeza. Sento e espero. As pernas doem. Foi a última tentativa. Gostaria de nunca mais ter que andar novamente. Não agüento mais caminhar tanto. Não quero mais caminhar. Mas sei que, insistente, quando me recuperar vou tentar de novo. Olho para o facão repousado junto aos meus pés. Olho para ele. Olho para meus pés. Alinho os dois pés, seguro o cabo ornamentado da lâmina e desfiro um único golpe com toda minha força.

Não consegui partir os ossos, mas a dor é intensa. A grama fica vermelha, assim como as flores amarelas ficaram antes. As flores amarelas. As flores amarelas estão longe do alcance das minhas mãos e não tenho forças para me arrastar. Tudo que eu vejo fica branco. A dor torna-se frio. Vejo um borrão planando sobre mim. A forma é familiar. Um retorno? Estendo a mão, mas não posso alcançá-lo.

sábado, setembro 16, 2006

Apologia

Busco a cura
vendida
em toda esquina.
Sorvo
a dormência líquida
esperançoso
da cura de todo desgosto.
Em instantes
tudo são plumas
leves.
Visão suave
de movimentos desconexos
e suores frios.
Imprime o riso à face,
simples, largo,
construído.
Meu torpor se quer
constante,
permanente.
Um toque é agora diferente.
Engulo o que já não sinto.
Tudo prossegue
rumo ao momento
inconsciente,
sublime estado
da não consciência
que me desprende
das agruras que me infligem,
e me completa,
mesmo que expelido
da existência.

domingo, agosto 13, 2006

Douto distraído

Dura dor.
Dura
a distância demasiado
dimensionada
da dupla defectiva em
dissabor dulcificado.
Diletantes
de dictérios draconianos.
Deleite da dor,
depauperando o dia-a-dia.
Duplo dissentir duradoiro,
dorido,
defeso.

sexta-feira, julho 28, 2006

Enamorados

-Alô.
-Oi.
-Ah, oi amor, como vai?
-Estou voltando, chego aí amanhã.
-Amanhã? Hum... Quanto tempo faz? Três meses?
-Por aí. Quero aquele jantar especial...
-Não pode me dar mais alguns dias? Para arrumar a casa?
-Como assim? Estou morrendo de saudades de você, não da casa. Não está também?
-Claro, é que...
-Chego amanhã.
-Comprou alguma coisa para mim? Um presente?
-Como sempre.
-É verdade.
-Aconteceu alguma coisa?
-Não.
-Um aborrecimento? É comigo?
-Porque seria?
-Não sei. Sinto saudades de você, do seu corpo, do seu cheiro.
-É. Eu também.
-Mesmo?
-Mesmo.
-Você não parece bem. Conversamos melhor amanhã.
-Não se incomode, pode falar agora.
-Só queria dizer que te...
-Um momento. Celular.
-Ok.

-Preciso ir, é importante.
-Ok. Nos vemos amanhã.
-Vai ficar aqui quantos dias?
-Uma semana.
-Pena. Tenho tanto trabalho a fazer nessa semana.
-Aproveitaremos cada momento de folga.
-Tentaremos.
-Quer que eu fique aqui? Vai ser sacrificante emendar uma viagem na outra, mas não quero... Não sei. Atrapalhar.
-Como lhe for conveniente.
-Eu fico.
-Pena. Eu te ligo.
-Mesmo?
-Mesmo.
-Então está bom. Um beijo.
-Tchau.
-Te adoro.

Tutututututututu...

domingo, julho 23, 2006

Reação

Rude ríspida
A mão ataca em
Repelão ansiando que venha a rusga.
Pobre mão! Reage insensata
Retida em memória do sentir insidioso
Rememorando os corpos resfolegantes.
Mesmo só querendo remir o carinho
Distante perdido reconfortante
Reage em erro
Afasta o que almeja receber
Repelindo seu desejo radioso.
Criança arredia!
Recusa renitente
Mas a todo o momento recorda
Quando a mão foi regozijo
Reiterando seu ardor relampejante.

quarta-feira, junho 14, 2006

O corpo sobreposto, por Bruno Alvaro

Eu o vi abrir a braguilha, não com curiosidade ou vontade de ver. Tirando a pele branca, não apressadamente, com certo afinco de fazê-lo o mais normal o possível. Vi então sua alma sombria e seu sorriso louco: foi então que eu tive certeza que não era a primeira vez que ele fazia aquilo.
Eu ali desprevenida, sem proteção e desgarrada naquele ponto da cidade que eu conhecia bem e sabia não ser um dos melhores para se estar. Lembro-me bem de cada detalhe que, volta e meia, tento apagar da minha vista. Mas é muito difícil de se desfazer de uma pintura deste tipo: pregada na sua parede mais vista por você mesma.
Eu ouvia carros passarem, as buzinas, as vozes das pessoas. Mas do nada, não ouvia mais nada, do simples nada, eu só conseguia ouvir as batidas do meu coração, guardado entre os meus seios, que naquele momento, já estavam marcados por dentadas. E eu podia sentir algo quente escorrendo do meu seio esquerdo, eu sei que não era sua saliva, pois o que antecedia ao calor era um ardido muito incomodo: meu mamilo esquerdo estava sangrando.
Parei de ouvir até a batida do meu coração, só podia ouvir agora o seu respirar forte, muito forte. Lembro-me bem dele rasgando meu vestido azul de verão, pois era verão, mas eu suava mais que num verão normal, jogando-me de frente a uma parede, onde, eu lembro bem, estava escrito: “Gentileza gera gentileza” e “Só Jesus expulsa o demônio das pessoas”. Até cheguei a sorrir neste momento, não sorri por satisfação ou prazer, mas da vida a gente não tira nenhuma lição, eu acho. Ele suspirando, suspirando, suspirando, suspirando, me dizendo coisas, coisas, coisas, como um eco eterno em minha vida.
A sensação eu ainda lembro, a dor ainda reside, mas eu não sei explicar, eu não posso explicar. E de pensar que eu ouvia os carros passarem, as buzinas, as vozes das pessoas...
Ele conjugava várias vezes o verbo arrombar. Repetidas vezes. Primeiro no futuro, depois no presente e depois de alguns minutos eternos, no passado. Não vou me ater a tentar definir melhor esses três tempos verbais, pois em apenas um ele me violentou.
Ninguém sabe ao certo a dor de alguém se sobrepor a você forçadamente. Lamber-te como uma coisa a ser lambida. Machucar-te severamente a alma, pois alma, sim, a alma também sangra. E o corte na alma não cicatriza nunca, nunca mais.
Mas eu ainda pensava, não amaldiçoava, pensava. E eu queria uma forma de livrar-me daquilo e mesmo sangrando, descobrir um mundo cego.
Pois o mundo de homem é cego. E depois de gozar e gozar sobre pressão, homem fica mais cego. O bruto arrastou-me a cara na parede enquanto violentava-me. Enquanto “gentileza gera gentileza” coloria-se com meu sangue, eu vi, no mesmo lado esquerdo do meu mamilo cortado, outro pau. Outro pau que também poderia sangrar uma alma, extinguir uma vida, talvez a minha, não sei. Expulsar um demônio escondido ou, quem sabe, despertar outro, até então tão contido Mas se é das cinzas que se nasce de novo e de novo e de novo, é com pau que se faz mais fácil quebrar ovos. Que monstro imbecil, pensar que poderia, simplesmente, gozar e gozar e gozar e gozar e gozar.
Como, eu não sei, pois da vida, eu não trago lições, nem carrego demais da conta, eu acho. Eu não fiquei lá, mas ele sim. E se foi bom para ele acabou por tornar-se melhor para mim. Só sei que homem depois que cai daquele jeito não levanta mais. E eu conjugava e conjuguei várias vezes, várias vezes, várias vezes o verbo matar. E enquanto conjugava seu sangue espirrava, molhava-me, limpava-me, banhava-me. Pois eu já nem tinha mais sangue meu, nem sentia mais o ardido no seio, na vagina, na alma...
E eu batia, batia, batia, batia, batia, batia, batia. E eu sorria, sorria, sorria, sorria, sorria, sorria, sorria. Não parei até ver ou não ver mais nada dele, nem da outra frase que estava escrita na parede das docas: “Só Jesus expulsa o demônio das pessoas”.
E de pensar que: “gentileza gera gentileza”. Só sei que nunca mais informei as horas para ninguém...

sexta-feira, maio 26, 2006

Mãos sujas de terra

Aquilo definitivamente não acontecia sempre. Assim que chegou no ponto, o ônibus chegou. Subiu e teve ainda que procurar o dinheiro para pagar a passagem. Acomodou-se em um banco junto à janela, e o sono chegou logo. Mas um barulho incomodava: a borracha que sustenta o vidro estava gasta, e este ficava trepidando. A solução foi simples. Uma folha de propaganda recebida na rua, vendendo meninas por dez reais, foi dobrada algumas vezes e preencheu o espaço entre a borracha e o vidro. Tudo pronto. Os braços abraçados à bolsa. Dormiu.
Acordou sobressaltado. Não conhecia o lugar por onde passava: dormiu demais. Levantou-se rapidamente e deu o sinal para descer na próxima parada. Saltou logo do carro. Quando percebeu onde estava, arrependeu-se por ter cedido ao momento de desespero. Estava em uma rua pouco movimentada e completamente desconhecida. Devia ter esperado passar por algum lugar conhecido para descer, ou mesmo, ir até o ponto final e retornar. Não havia mais volta. Já estava ali mesmo. Observando o local percebeu um bar ainda aberto, mesmo sendo tão tarde. Uma solução. Perguntaria ao balconista onde estava e onde poderia pegar um táxi. O bar estava vazio, então foi logo até o balcão.
-Por favor, poderia me dizer...
-Estou aqui – disse a mão que de repente segurava seu braço.
Olhou para o lado. De onde surgiu aquele homem? Desvencilhou-se da mão. Era um pouco mais baixo que ele, e mais velho, e mais gordo. Pela roupa e aparência não devia ser um marginal. Um mal entendido. Tratou logo de resolvê-lo:
-Desculpe senhor, mas eu...
-Tudo certo agora, senhor André. Meu carro está estacionado aqui em frente.
Sabia seu nome? A sensação de mal entendido evoluiu para receio.
-Carro? Como sabem quem sou eu? Não o...
-Me acompanhe senhor, tudo já está arranjado.
Sentia-se curioso agora. De onde surgiu aquele homem? Não lhe parecia estranho, mesmo com toda aquela confusão. Receio, curiosidade. Risco. A curiosidade falou mais alto.
-Certo. Vamos então.
Acompanhou o homem até o carro. O senhor ia abrir a porta de trás, mas ele apressou-se em sentar no banco do carona. O carro partiu. André não observava o caminho, fitava o misterioso senhor o tempo todo. Aparentemente ele não mostrava-se constrangido com aquela observação insistente. Continuava o ritmo freqüente: girar o volante, pisar nos pedais, manipular o câmbio. A mão gorda possuía um anel no dedo médio. Não dava para afirmar se era casado. Uma pista mínima de quem poderia ser. Arriscou:
-É chato trabalhar tão tarde?
-Nunca encarei isso como um trabalho.
-Certo – o que poderia ser então? Não era simplesmente um motorista? Perguntar para onde o levava despertaria suspeitas. Tinha de ser sutil.
-Qual caminho vai pegar?
-Tem preferência por algum? – respostas com perguntas são terríveis.
-Não.
A única solução era esperar. Mesmo porque, assim tão escuro, não percebia por onde passavam. Ficar observando o homem dirigir também não revelava muito.
-Posso chamá-lo pelo nome?
-Sim. Só João, por favor – uma informação.
-Bem João, chegaremos logo, não é?
-Na verdade já chegamos.
João desceu do carro e abriu a porta para André. Desconfiado, desceu e viu que encontravam-se em uma espécie de jardim. Não imaginava onde poderiam estar.
-Vamos logo.
André ficou boquiaberto quando aquele homem começou a despir-se na sua frente. Um pervertido! Havia caído no golpe de um velho maníaco. Reparou logo que João não possuía nenhuma pistola, revólver ou faca. Rapidamente, pensou em correr para o carro e fugir. A visão daquele corpo antigo, com barriga proeminente e pelos brancos causava-lhe repulsa. Virou-se e foi em direção ao carro.
-Comece logo. Dispa-se!
Gelou. Ficou com muito medo de olhar para trás. Em pânico, tirou toda a roupa. Virou-se constrangido com a mão tampando o sexo. Mas o medo passou logo que viu o velho sentado no chão, cavando a terra. Ficou intrigado. Não havia arma alguma.
-Cave também!
Sentou-se e começou a cavar a terra também. Inexplicavelmente não conseguia desobedecer àquela ordem. A voz de João tornou-se tão imperiosa que não podia ser ignorada. André olhava fixamente para a terra, não arriscando olhar para aquele velho estranho. Passou algum tempo revirando a terra. Certa hora ousou levantar a cabeça. Aquele homem gordo havia cavado um buraco enorme naquele pouco tempo. Levantou e deitou-se ali dentro. Começou a cobrir-se de terra. Estava enterrando-se vivo. Quando só o rosto continuava descoberto falou:
-Tem sorte de poder retornar tão jovem.
E afundou a cabeça na terra. André não acreditava no que via. Estava ali, nu, presenciando um suicídio. Ficou ali, estático, observando a terra revolvida onde jazia o velho. Um desespero acometeu de repente o seu peito, e correu para salvar João. Não era perversão, mas desequilíbrio, desgosto talvez. Respeito. Compreensão. Angústia. Cavou desesperado. Cavou. Cavou. Cavou. E nada. O corpo do velho não estava mais ali. Havia desaparecido, como se tivesse tornado parte da terra, misturando-se a ela. Sumiu. André respirou firme e sentou ao lado do buraco que cavou na expectativa de salvar João. Enfiou os dedos na terra e recomeçou a cavar, resignado. Cavar sua própria cova. Não havia opção. Já havia ido longe demais.

segunda-feira, maio 22, 2006

O sorriso de Domingos, por Francisco Cota

Domingos veio de Minas. Camisa furada de deputado estadual e calça jeans com os fundilhos costurados. No Rio de Janeiro, o pedreiro travestiu-se de auxiliar de escritório. Em vez de virar laje, ele agora orgulhosamente anota recados, tira fotocópias, entrega documentos e enfrenta filas de bancos. Sim, Domingos também é boy. Certo dia, foi ao Barra Shopping entregar papéis pardo e teve o dia mais feliz de sua vida.
Nunca tinha entrado em um shopping antes e percebeu que na porta não havia maçanetas. Até que uma menina passou por ele e as portas se abriram sem abracadabra. Ele foi no embalo e se deparou com um clima de montanha que o fez lembrar da sua terra. Foi perambulando pelos corredores à procura das lojas onde deveria entregar os envelopes. Duas adolescentes passam por ele. A da esquerda bem magrinha, estilo modelinho, com uma bundinha pequena mas um com andar lascivo e provocante. A da direita no estilo cavala, peito estufado explodindo no acintoso decote. Depois de trazer seu pescoço à posição de origem, Domingos procura controlar-se pensando na namoradinha que deixou em sua cidade natal, com seus poucos dentes na boca, os cabelos desgrenhados e o vestido de viscose estampado.
Depois de dez minutos vagando sem norte, finalmente ele encontra um balcão de informações, onde uma atendente de cabelos presos e nuca descoberta, metida em um uniforme que valorizava a cintura fina e o quadril largo o informa o caminho até a primeira loja. Quando enfim conseguiu desviar os olhos e parar de imaginar um beijo na boca da atendente, Domingos agradeceu e seguiu até a escada rolante mais próxima. Antes de tomar coragem de embarcar na aventura de subir sem fazer esforço, Domingos aprecia um par de coxas debaixo de um palmo de saia deslizando escada abaixo. No andar superior, uma alta loira de olhos azuis beija adolescentemente um velho repleto de ouro por todo o corpo. Domingos deixa escapar um “minha nossa senhora”.
Olhando as vitrines em busca da loja desejada, ele vê alguns tênis que valem três meses de seu salário. Vê televisores que medem três vezes o seu. Vê mulheres com rabos três vezes maiores que os de sua menina. Calças justas. Cintura baixa. Piercings nos umbiguinhos de fora. Coladinhas. Os sexos estufados, convidativos, suculentos. Diferentes cores, sabores, texturas, tudo ao alcance do olhar e longe do pênis. Todas parecem tão safadas, ousadas e ao mesmo tempo tão frias, indiferentes. Seus olhares passam longe, como se atravessassem Domingos.
Quando finalmente chega à primeira loja, a atendente desfila seu vestidinho de pano leve e vem em sua direção com o sorriso aberto:

- Oi gato, posso te ajudar?

Com o pau duro, Domingos diz que precisava apenas entregar alguns documentos à dona. Com a cara fechada, a moça aponta o balcão. Domingos entrega o papel pardo e corre para o banheiro. Ele precisa externar sua excitação, dor e desespero. Chegando ao banheiro, o caipira observa entrar na porta do banheiro feminino duas ninfetas colegiais com os uniformes propositalmente encurtados e, lá dentro, uma mulher de seus trinta e poucos anos ajeita o sutiã e observa o decote. Outra, de seus vinte e cinco aninhos, vira de costas para olhar a bunda no espelho. Ali mesmo Domingos começa a masturbar-se. Um segurança o avista e repreende o matuto. Envergonhado, ele sai correndo pelos corredores. Continua vendo mulheres sensacionais. Loirinhas, ruivinhas, moreninhas, poucas negras, o que ele lamenta. Nenhuma olha para ele. Todas encerradas em seu mundo próprio. Domingos passa em uma loja e vê mais de trinta televisores sintonizados em um show de Axé. Os shorts de lycra minúsculos, as carnes trêmulas, tenras, suadas. Outro grupo de televisores tela plana passam um programa que mostra relações sexuais no mundo animal. Um leão cravando na leoa. Um elefante explodindo a aliá. Um chipanzé bufando no cangote de sua amada...
Na cabeça de Domingos, uma palavra o atormenta, asfixia. A piroca lateja, incomoda. Vaginas ambulantes em cima de saltos caramelo não param de passar. De todos os cantos ele vê surgirem pares de peitos. Dentro de todas as lojas, vindo de todas as partes, pra qualquer lugar que ele olhe, haverá um umbiguinho de fora esperando ser lambido. Ele corre. Não é mais um homem. È um gorila vazando esperma. Sobe no corrimão de um mezanino que dá vista para a praça de alimentação no andar de baixo. Com os braços para o alto, Domingos enche os pulmões de ar e deixa a palavra que tanto o martelava fluir sangrando suas cordas vocais:

- BUUUUUUUUCEEEEEEEEETAAAAAAAAAA!!!!!

Lá embaixo, velhas engasgam com a comida e menininhas riem. Domingos rasga sua blusa, berra e tira a calça, deixando o pau duro livre. Ele agora sai correndo, cambaleando, suando. Ele está tenso e procura sua presa. Dentro de uma loja, uma loira de vestidinho curto, coxas grossas, decote violento e brincos de argola dourados gigantescos, abaixa para pegar a blusinha de quinhentos reais que deixou cair no chão. Com os dentes semicerrados, Domingos trota em direção à fêmea e levanta o vestido o suficiente para poder arriar a calcinha vermelha até o tornozelo. A vítima tenta evitar, mas Domingos empurra para dentro seu membro e, segurando as duas mãos da mulher, penetra veloz e violentamente, a fim de gozar o mais rápido possível. Fode, fode, fode, fode. Segundos antes dos seguranças surgirem atendendo os chamados, ele urra satisfeito, colonizando o íntimo da mulher.
Com sua bandeira cravada, ele dispara nu e sorridente. Desliza sobre o piso reluzente do shopping, exibindo seu falo flácido, saciado. Ele gargalha feliz. Berra alto. Grita. Urra. Enfim é alcançado. Os cacetetes fazem bastante estrago. Ele sorri. Os socos derramam sangue. Ele sorri. A gravata faz o mundo escurecer. Ele sorri. E fim.

quarta-feira, maio 17, 2006

Materna

-Bom dia! – disse ela para si mesma.
Da sacada onde estava observava as do prédio em frente. Era um prédio branco e amarelo. –Também tem tela de proteção na varanda do quarto andar – observou. Crianças, provavelmente. Ela tinha o sonho de ter filhos, não tão em segredo, como ela acreditava ser melhor. Todos os seus amigos sabiam do seu desejo e com o passar dos anos eles pareciam achar seus planos engraçados. Não que fosse muito velha, mal havia passado dos trinta. Mas o problema residia aí mesmo: mulher jovem, bonita, razoavelmente bem sucedida e muito agradável. Porque não havia concretizado esse desejo ainda? Como desejo digo ter filhos, casar não era necessariamente uma prioridade, ainda que seus relacionamentos fossem, em regra, superficiais. Talvez se um dia tivesse tentado conversar com o vizinho do prédio em frente, que sempre gastava bastante tempo observando-a da sacada, teria tomado conhecimento de que ele a achava muito bonita e estava muito interessado nela. Mas eles nunca haviam se falado, e desse jeito permaneceu até o fim, quando ela já não se lembrava de tê-lo visto um dia, mas ele ainda se lembrava dela.
Mas esse tempo está muito à frente do que queremos contar. Naquele dia em que ela acordou tão animada, embora o céu estivesse cinzento, havia o pressentimento de que algo muito bom poderia acontecer. Ora, já dissemos que ela não tinha filhos nem amante, mas isso não quer dizer que era totalmente solitária. Havia o cão. Era muito bonito, mas não tão esperto. As orelhas caídas davam um toque especial em sua cara de bobo. Mas era um bom cão.
Ela levou o cão para passear. Não seria um passeio tão divertido como se estivesse um belo dia de sol, mas foram assim mesmo. Passando por uma loja de animais, ela comprou-lhe um brinquedo. Provavelmente mais uma tentativa inútil. O cão definitivamente nunca entendeu a brincadeira de jogar, buscar e trazer. Sempre que ela arremessava algum brinquedo o cão o buscava, mas não trazia de volta: escondia. Não entendia ou simplesmente não achava divertido. Ainda assim, caminhando para o parque, ele tentava dar o bote na bolsa para receber seu presente, e ela se divertia suspendendo a sacola. Pararam para atravessar a rua. Nisso, percebeu do outro lado da rua uma mulher de camisola sentada em um banco com um carrinho de bebê. Era conhecida... Isso! Era a jovem que morava no apartamento do quarto andar com a tela recém-instalada. Havia tido um filho, então. Mal havia concluído esse raciocínio viu a jovem de camisola deixar o carrinho no lugar e ir embora. E como viu que ela se afastava muito e não parecia intencionada a voltar, gritou. Não houve resposta, então correu até lá. Chegando do outro lado, percebeu que a criança chorava, mas a mãe ignorava os gritos de ambos. Tomou a criança no colo e se deu conta da ausência do cão. Ele ficou para trás. Atropelado. Morto. Com o brinquedo na boca.
Ela agarrou forte a criança e correu. Muito. Pensando no porque da jovem mãe rejeitar o que era seu maior sonho. Porque seu único companheiro morreu assim, de modo tão estúpido, esquecido. Porque ela sequer voltou para ver seu corpo. Porque ela nunca devolveu a criança.
Mudou-se dali, e como ninguém percebeu seu delito, o menino jamais soube que foi roubado de sua mãe verdadeira. Mais tarde soube que a jovem sofria de depressão. Não se importou: jamais considerou o fato como um roubo, mas como uma troca justa. Afinal, para ela o mais relevante era o fato da jovem ter abando nado o menino, e seu cão ter morrido quando foi ajudar. O que não era mentira, ainda que a jovem tivesse seus motivos. Mas não diremos que o ambiente onde o menino cresceu não era saudável. Ganhou até mesmo um pai, poucos anos depois. Quando ela já percebia que estar com alguém não precisa ter relação alguma com o amor.

quinta-feira, maio 11, 2006

Instantâneo ausente


    Quando vejo a foto, aquele momento torna-se bem tangível em minha mente. Não posso dizer que me lembro dele como se fosse ontem. Não. Sei muito bem quantas badaladas o relógio da minha vida já deu. Meus momentos posteriores nunca somem de minha lembrança, e não me sinto como se fosse jovem novamente. Mesmo por que quando observo aquela mão estendida ali, tão casual, não consigo deixar de comparar com a minha: deformada pelo tempo. As rugas estão aqui, os ossos aparentes. Talvez se tivesse uma mão mais gorda as rugas estariam escondidas pelo tecido adiposo. Mas mantenho o mesmo peso daquela época, com a única mudança de que a gordura era mais bem distribuída. Alguns lugares estão secos, outros aumentaram, revelando um corpo não mais agradável de ser visto. As mãos estão aqui, os dedos compridos, finos, as veias que saltam mesmo com pouco conteúdo, as unhas quebradiças. Talvez um pouco de gordura disfarçasse isso. Mas para minha memória tal disfarce seria inútil. Lembro de tudo. Não me vejo jovem novamente, mas lembro da última vez que me vi assim, mesmo não conseguindo precisar que idade era. Olhando para a foto lembro daquele momento. Da foto que ia tirar dos amigos, todos reunidos. Então, o incidente. Um brincalhão esbarrou em mim na hora do clic. Os amigos sumiram. Era a última pose. Hoje certamente preferia estar vendo a foto deles. Apontaria um ou outro que morreu, aquele que teve um casamento infeliz, divórcio, aquela que continua linda, a outra que engordou muito. Isso me traria tristezas e risos. Ver a face deles traria saudades. Meus amigos gravados em instantâneo sumiram para sempre. Só vejo aquela mão. A mão da menina que estava com a mão sobre a mureta. Nunca soube seu nome. Estava lá, naquela festa de confraternização. Mas não era minha convidada, nem de meus amigos mais próximos. Não sei quem a convidou, lembro vagamente do seu rosto que vi poucas vezes. A foto ficou guardada muito tempo no álbum. As fotos dos amigos lentamente foram sumindo. Residiram na cortiça emoldurada no escritório improvisado no quarto de uma empregada que nunca tive. Foram emprestadas para cópia e nunca retornaram. Sumiram nos porta-retratos castigadas pela luz. Até que no álbum só restou a mão. Nunca saiu do álbum porque não tinha importância: filme e papel fotográfico gastos à toa. Centavos desperdiçados. Hoje ela jaz sozinha e me traz tantas lembranças. Mas acima de tudo traz um grande incômodo. Aquele imprevisto que deixou uma marca tão forte para mim, que mesmo tantos anos depois esbofeteia o meu rosto. Um momento de imprecisão, falha, descontrole. Descontrole, falha, imprecisão não causados por mim. Não gerados por mim. Longe do meu alcance e nas minhas mãos. E que acima de tudo me traz um grande incômodo.
    Incomoda-me ver a mão velha tocando a mão jovem, sem rugas.
    Incomoda-me a ausência dos amigos, substituídos por aquele apêndice indesejado.
    Incomoda-me o conto dos meus anos diante dela.
    Tudo é tão incômodo.
    Tudo é tão terrivelmente incômodo.

    sábado, maio 06, 2006

    Portas fechadas, por Victor Monte

    Arrumava suas trouxas. Era seu último dia e a saudade havia lhe desgastado durante o tempo. Agora aquele era seu lugar. Quinze anos se passaram e os muros e grades eram a paisagem mais comum. Não podia acreditar que voltaria pra rua, um novo mundo se abria à sua frente.
    Olhava agora pelas grades e via o que o esperava: carros passando, pessoas andando, correndo. Lá fora não parecia mais tranqüilo que aqui dentro. Lembrava de sua infância. Das brincadeiras, uma em especial: gostava de fazer trilhas de pães e aprisionar rolinhas na gaiola. Se perguntava se não foi o mesmo que acontecera com ele.
    Era agora interrompido por uma voz:
    - Vamos, Vamos! - Era o carcereiro lhe chamando.
    Os amigos se despediam com lágrimas nos olhos:
    - Adeus irmão! - Falava Rodrigo, seu companheiro mais chegado.
    Agora não restava mais tempo para despedidas. As pernas pesavam e tremiam. Caminhava pesado. Olhava para trás como quem havia perdido algo. Talvez o tempo, talvez a vida. Uma porta se abria atrás da outra. A cada passo, mais próximo da liberdade se encontrava. Não sabia se a queria.
    Ao chegar no portão principal, a imagem da rua foi impactante. A vontade era voltar, mas sabia que não podia. Escorregou, mas com ajuda do carcereiro se manteve em pé.
    O portão se abrira e agora finalmente se encontrava na rua. Pensava para onde ir. Na noite anterior tinha decidido que iria procurar sua irmã. Afinal era o único parente próximo que ainda restava. Sua mãe havia morrido e seu pai não o conhecera. Ele não havia deixado filhos, porém sua irmã não fazia contato há anos e muito menos o visitava.
    Colocou as mãos dentro de uma bolsa onde se encontravam seus pertences. Remexeu de todas as maneiras e enfim achou um pedaço de papel com letra apagada onde estava escrito: “VILA DOS MARINHEIROS - Rua dos Aflitos, casa 3, fundos”. Era o endereço de sua irmã.
    Vila dos marinheiros. Era lá que havia passado boa parte de sua vida. Se perguntava como estaria o lugar depois de tanto tempo.
    Sua irmã morava em outra casa, mas o bairro era o mesmo. Se dirigiu até o ponto de ônibus e perguntou só pra ter certeza:
    - Qual o ônibus que passa em frente à Vila dos marinheiros?
    - 207. Respondia de forma gentil a senhora.
    Sua memória estava certa, o ônibus era o mesmo que havia pensado. Por um momento seus olhos se fixaram nela e se perguntou: pra onde ela iria? Será que tinha filhos? Ou será que era uma sozinha na vida assim como ele? Saiu do transe. Essa idéia o assustava. A senhora olhava de rabo de olho surpresa com sua postura. Disfarçou e passou a mão no rosto, como quem tem uma longa caminhada pela frente. Esperou. Passara dez, quinze, 20 minutos e finalmente avistava ao longe o seu ônibus.
    Já dentro do ônibus sentou na janela. O vento batendo na cara dava uma estranha sensação de liberdade, mas sentia que aquele não era seu lugar. Aquela sensação gostosa ia se definhando, o vento diminuindo. Agora o ônibus caminhava a passos de formigas.
    - Formigas! - Sussurrou. Olhava para a rua e as pessoas estavam agitadas. Não pareciam querer estar ali. Lembrara ter tido esta mesma sensação na sua última olhada pela cela da cadeia, porém agora tudo parecia mais real. As pessoas pareciam pedir ajuda, pareciam não saber aonde ir mas caminhavam rumo a algum lugar. Em segundo plano via pessoas maltrapilhas a se esconder, eram como borrões em um quadro, borrões que o artista não queria reconhecer como seu. Esse quadro queria lhe dizer alguma coisa, mas não entendia o que. Preferiu esquecer isso por um instante. Olhou pra frente e viu atrás do motorista uma toalha escrita: “Só Jesus salva”. Pensou que talvez não tivesse dado tempo para Jesus lhe salvar. Assim como num prédio que pega fogo e muitas vezes o bombeiro tem que optar entre idosos, mulheres, crianças, etc. Talvez estivesse no final dessa lista, na parte onde se lê: “excluídos”.
    De repente um estalo em sua mente. Pensou na paisagem que se emoldurava como um quadro. Surgia em sua mente a palavra TRABALHO. Todos trabalhavam. O motorista do ônibus, o guarda, os vendedores ambulantes. Até os mendigos, borrões que a sociedade criava mas não se responsabilizava, em busca da sobrevivência diária. Mas pensava: se todos trabalham, se todos produzem (não conseguia identificar o que), se todos têm sua importância, por que alguns tinham muito e outros tão pouco? E por que os que não trabalhavam tinham mais do que os que trabalhavam? Sua cabeça embolava. Não conseguia responder a todas as perguntas. Essas mesmas perguntas já haviam o acometido em outros tempos, mas naquela época vinham acompanhadas de uma grande angústia. De uma dor.
    Uma pistola era seu instrumento de trabalho. Cansara daquela vida miserável de boy: esporro, esporro, cobrança, anda pra lá, anda pra cá e no final do mês uma merreca. Não era isso que ele merecia. Não era isso que sua mãe merecia. A TV lhe mostrava um mundo de sonhos. A arma era sua varinha mágica pra entrar nessa fantasia. Mas a carruagem virou abóbora.
    - Merda! Porque ele reagiu ao assalto? - Se arrependia de ter matado aquele rapaz.
    -Era só entregar o carro! - Continuava a pensar em voz alta.
    Lembrou que não estava mais na prisão e se sentiu aliviado por não haver ninguém do seu lado ouvindo suas palavras.
    Enfim se deu conta do porquê de estar ali naquele ônibus. Chegou perto do motorista, olhou para trás e viu que estava perto do seu destino. Sentou no banco da frente e ficou à espera. Passados cinco minutos, chegou a hora de saltar.
    A paisagem não era das mais bonitas, aliás, nunca fora. Vila dos Marinheiros era uma comunidade pobre, o que habitualmente se chama de favela. Andava em busca do endereço anotado no papel. Percorria becos e vielas. Tudo parecia tão igual ao que era quando deixara sua casa algemado. Ouvira uma vez dizer que tudo melhorava com o tempo. Quem havia dito isso pra ele? Tentava recordar-se. Precisava dizer a essa pessoa que talvez o tempo não passasse em alguns lugares. Os rostos eram os mesmos. Tristes, sem rumo, sem perspectiva. As crianças brincavam, as valas negras se expunham e os vermes proliferavam. A esperança tinha ido embora como quem esperava o tempo passar, mas ele não passava.
    Uma voz interrompeu sua caminhada:
    - Xavier, Xavier!
    Se voltou para a pessoa que lhe chamava e olhou fixamente em seus olhos. Se esforçava pra reconhecer quem era.
    - Não está me reconhecendo, menino?
    Agora conseguia lembrar. Era o Sr. João, um antigo vizinho e grande amigo da família. Recordava-se de uma vez ainda criança quando quebrara o braço e o mesmo Sr. João, com sua Kombi, o levara para o hospital. Não esquecia esses pequenos gestos de afeto. Talvez a falta de um pai fizesse reconhecer em pequenas atitudes como essa a figura paterna que se ausentara. Mas naquele momento teve dificuldades de reconhecer Sr. João.
    - Como vai, Sr. João? - O cumprimentou timidamente.
    - O bom filho a casa torna! - Exclamava Sr. João como quem quisesse não tocar no assunto da prisão.
    Xavier não perdeu tempo e foi logo perguntando sobre sua irmã. Até porque não havia muitos assuntos a tratar com ele e sua timidez no momento não permitia que se aventurasse puxando alguns desses assuntos triviais como: E a família? Tem feito muito calor?
    Depois que Sr. João explicou onde ficava a casa da sua irmã, prometeu passar em sua casa para botar o papo em dia, promessas essas que nunca se cumprem.
    Foi por entre as vielas. Todos os rostos lhe pareciam estranhos, mas observá-los o distraía. Estranhava o fato do endereço passado por seu João ser diferente do que estava escrito no papel, mas confiou na sua palavra. Enfim chegara ao beco 13, uma casa verde com portão cinza sem número. Exatamente como Sr. João lhe explicara. Sim, essa devia ser a casa de sua irmã. Procurou a campainha, mas não achou. Começou a bater palmas e logo apareceu um cachorro que começou a latir. Logo a porta se abriu, imediatamente sua irmã o reconheceu. Abriu a porta correndo e lhe deu um forte abraço. Chorava um pouco de alegria e um pouco por culpa. Queria explicar sua longa ausência, falava rápido até um pouco embolada, estava muita ansiosa. Dizia que há cinco anos atrás fora morar na cidade do seu marido, comendador Gomes, uma cidade que ficava localizada no triangulo mineiro. Havia ido pois existia a perspectiva de seu marido ganhar mais trabalhando na fundição de um tio. Porém cinco anos depois a fundição falira e agora eles haviam voltado a menos de um mês. Explicou que assim que partiu enviara uma carta explicando toda a situação e mesmo tendo chegado lá, as continuava enviando. As cartas, contudo, sempre voltavam. Xavier a tranqüilizou e explicou que havia sido transferido de presídio por essa época. Estava cumprindo a pena em uma colônia agrícola para presos de bom comportamento. Apesar de Xavier não demonstrar nenhum tipo de rancor ou tristeza devido à ausência de sua irmã. Ela continuava se explicando. Falava da dificuldade que era para viajar para visitá-lo e não parava o seu falatório. Só parou quando seu marido a interrompeu para dar um efusivo abraço em seu cunhado. Logo em seguida apareceu seu sobrinho que também o cumprimentou, de forma acanhada, pois não tinha tido muito contato com seu tio.
    Entraram na casa.
    Xavier se aconchegou no sofá e todos se reuniram em torno deles para conversar. Entretanto não demorou muito para descobrir que sua presença trazia alegria, mas essa alegria custava caro. Seu cunhado estava desempregado, afinal tinha voltado a pouco tempo de Minas. Sua irmã sustentava a casa trabalhando como empregada doméstica e vendendo salgadinhos. Entendera também o motivo da mudança de endereço. A antiga casa havia sido alugada na saída pra Minas e o inquilino ainda se encontrava morando lá.
    Depois da longa conversa, todos foram dormir. Xavier demorava a pegar no sono. Pela fresta da janela via o céu de um ângulo que há muito não via. As grades não eram mais obstáculos. Sabia que podia abrir a janela e botar a cabeça pra fora. Sabia que podia abrir a porta e andar sem rumo. Essa liberdade o assustava e olhando para o céu, fixando seus olhos nas estrelas, pensava no seu futuro. Pensava que o amanhã seria diferente e não mais tão previsível. Entorpecido por esses pensamentos, finalmente dormiu.
    De manhã, com o céu ainda escuro, acordou assustado. Não estava mais na cadeia. Olhou para o lado e seu cunhado estava tomando café.
    -Bom dia! - Disse Xavier como quem paga um tributo por ter sido tão bem recebido.
    Perguntou a Zito, seu cunhado, o que lhe fazia sair da cama tão cedo. Zito respondeu que iria sair para procurar emprego. Ouvindo isso, se ofereceu a ir junto. Oferta prontamente aceita por Zito, uma companhia era sempre bem-vinda e era importante que Xavier se habilitasse o mais rápido possível a procurar um emprego, afinal se a jornada não era fácil para ele, seria ainda mais para um ex-presidiário. Xavier tomou banho e em seguida tomou o café. Os dois se despediram da sua irmã Clarice. Seu sobrinho Valter continuava dormindo. Botaram o pé na rua e o céu permanecia escuro.
    Assim começou o dia e ao passar pelos locais aonde procuravam emprego em cada fila em cada espera uma história de vida diferente, todos tinham algo a reclamar, todos tinham problemas, todos sofriam de alguma forma. Ouvir estas histórias amenizava a sua dor pelo tempo perdido.
    Depois de ter preenchido vários formulários, conversado com várias pessoas diferentes, o céu escurecia de novo, o dia estava acabando.
    Chegava em casa exausto e assim foram os dias subseqüentes. Passado um mês, Zito o abandonara na sua caminhada, havia arrumado emprego de manobrista em um shopping.
    Sua procura ainda se estendera por três meses, até que enfim arrumara um emprego de caixa de supermercado. E assim foram se passando os restos dos seus dias. Oito horas de trabalho, quatro de hora extra, de segunda a sábado. Chegava em casa sem força para nada. Casa, trabalho, trabalho, casa. Sua vida não tinha perspectiva de mudança.
    Foi então que em dia desses, sentado no Caixa, lá pelo final da tarde, sua mente divagou sobre esses pensamentos. Tudo aquilo lhe parecia familiar, sentia um sentimento de nostalgia, como quem já havia vivido aquilo. Agora tudo fazia sentido: ainda estava em uma prisão.



    quinta-feira, maio 04, 2006

    Duas solidões

    Aquela lágrima que cai
    com angústia serena
    por você não eu
    solitária sozinha

    não traz a mim você
    conforto tranqüilidade.
    Desconstrói dissabor.

    É minha.
    Ímpar
    como nós.
    Sem par
    distante calada.

    Outra lágrima que cai
    com desespero abrupta
    por você não eu
    solitária sozinha

    não traz a você mim
    aceitação compreensão.
    Desconstrói desapego.

    É sua.
    Ímpar
    como nós.
    Desencontrou seu par
    distante calada.

    Toda lágrima que cai
    com angústia serena abrupta
    por você eu nós
    solitária sozinha

    traz a mim você
    unidade distante.
    Desconstrói.

    É nossa.
    Ímpar
    como o todo.
    Sem par
    do começo ao fim.

    segunda-feira, maio 01, 2006

    mais um momento

    Bang!
    -Sabe, acho que sou uma pessoa ruim.
    -Hein? Acho que você já bebeu demais. Já foram cinco garrafas.
    -Não. Eu só bebi dois copos. Parei de beber ainda na primeira garrafa.
    -Nem percebi.
    -Acontece sempre comigo.
    -Olha, pare com isso. Que história é essa de ser ruim?
    -Acho que sou.
    -Isso é bobagem. Maniqueísmo besta. Não existe isso de bem e mal.
    -Existe o que então?
    -Existem nuances, muitas cores.
    -Um arco-íris?
    -Hahahaha!
    -Hahahaha!
    -E se te disser que algumas vezes me incomodo com o sucesso dos outros?
    -Sei lá, pode acontecer. Tem gente que consegue tudo e não merece, então...
    -Com o seu sucesso?
    -Hã... Cara, eu sei que você é um grande amigo, e tem passado por momentos difíceis. Relaxa.
    -Eu não gosto de algumas coisas que penso, mesmo sem querer. Não sei o que é, mas existe alguma coisa que faz de mim uma pessoa ruim.
    -Já pensou em sair mais vezes? A gente só tem 25.
    -Sinto um desprezo muito grande por pessoas que não fizeram nada.
    -Tipo não combinou com o anjo da guarda do outro?
    -Desprezo justamente porque não fizeram nada. Porque são nada. Mas ao mesmo tempo me desespero com medo de ser um nada também.
    -Nossa. Vamos a um pagode na sexta? Tem muitas meninas bonitas.
    -E como sou ruim, acho que vou me tornar um nada. O que me revolta, porque eu não sei o que faz de mim uma pessoa ruim.
    -Você está ouvindo o que eu digo?
    -Um dia desses vi um desenho animado na TV onde...
    -Japonês?
    -É.
    -Não gosto de ficar assistindo essas bobagens, você devia...
    -Escuta.
    -Está certo, diga.
    -O personagem principal era um menino que sofria muito. Uma espécie de deusa deu a ele a oportunidade de acabar com as pessoas que o faziam sofrer e viver tranqüilamente em um mundo só dele.
    -E?
    -Ele preferiu deixar as coisas como estavam.
    -Legal! Ele descobriu que gostava das pessoas.
    -Não. Ele preferiu o sofrimento real a uma paz falsa.
    -Ah, ele gostava de sofrer.
    -Acha isso?
    -É, ele teve a opção de parar de sofrer, não teve?
    -Acredita que alguém goste de sofrer?
    -Tem pessoas que gostam... Os masoquistas.
    -Acredita mesmo?
    -Não.

    -Ah, vamos para com essa conversa! Não estamos em um desenho japonês. Japonês?
    -É.
    -Então. Estamos em um bar, vida real.
    -Não temos deusas aqui.
    -Isso, meu amigo.
    -Mas existem outros caminhos.
    -Como?
    -Voltado um pouco para cima, bem no centro, para não correr o risco de sair pela bochecha. Eu acho...
    -Não entendi mais nada.
    -Falo do cano.
    -Cano? Qual o problema? Uma goteira em cima de você? Bem, espero que a marquise não desabe em nossas cabeças.
    -Vou ao banheiro.
    -Não demore, esse papo estranho me deu vontade de ir para casa. Vou pedir a conta.
    -Tudo certo. Não vou demorar mais que o necessário.
    -Endoidou de vez. Hehehehe... Vai fazer xixi de mochila?
    -Um beijo.
    -Hein?

    terça-feira, abril 25, 2006

    Do alto daquela torre

    Ninguém sabe quem mandou erguer aquela torre com aquela aparência tão inóspita. Se foi o rei, ou seu pai, ou seu avô, ou quantas gerações atrás. O que importa é que houve o dia em que uma pessoa encontrou naquele lugar sua casa. Mas não. Não sabemos se aquilo era uma casa, uma clausura, uma prisão, ou todas essas coisas juntas. Não sabemos ao certo. Mas a princesa morava ali, isso sabemos. Mas se fazia isso por imposição ou vontade própria também não sabemos... Paremos então de dizer o que não sabemos antes que essa história acabe se tornando um grande caminho de dúvidas, pois algumas coisas aconteceram naquele lugar, e essa é a parte que nos interessa e acreditamos merecer serem contadas.
    Aquela princesa não era exatamente o modelo de princesa que muitas fábulas contam: não era a mulher mais bonita daquele reino. Ainda que, justiça seja feita, possuísse certa beleza sim, não era conhecida por isso. E não poderia mesmo. Até porque foram poucos aqueles que a viram, e em menor número ainda eram aqueles que tiveram a oportunidade de contar o que viram. Seu pai, o rei, certamente foi um desses últimos. Sua mãe não. Morreu ainda no parto, sem ver seu rosto. Sua madrasta, que não era má, não tinha permissão para vê-la. Mas os poucos que a viram revelaram que ela tinha uma semelhança com uma princesa de outro conto: possuía tranças enormes, mas de cabelos castanhos.
    Acontece que os anos se passaram, e o rei um dia viu-se preocupado com a solidão da filha. Passava os dias só, sem muito que fazer. Seu maior passatempo era um tanto peculiar. É claro que, preocupado com a instrução da filha, o rei mandou deixar ali muitos livros. Cada um teve sua devida dose de interesse, que não durava muito. Mas um em especial lhe rendeu bons frutos. Era um livro de ciências ocultas, bruxaria, feitiçaria, ou como quiser que se chame. Um encantamento lhe despertou especial interesse: conseguiu dotar um espelho com a faculdade de mostrar cenas do mundo exterior. Porém, como a princesa era apenas uma iniciada naquelas artes, o espelho emitia imagens um tanto distorcidas, que destoavam um pouco da realidade. Uma imagem falseada da realidade parecia-lhe muito mais interessante que a realidade, assim como achava os romances mais interessantes que os livros de história, mesmo havendo quem diga que são a mesma coisa. Enfim, esse era seu maior passatempo, mas para seu pai não era o suficiente. Já havia passado da idade em que as meninas da corte habitualmente se casavam, então resolveu conversar com ela.
    -Filha, não desejas conhecer alguém para passares o resto de tua vida?
    -Meu pai, eu aceito conhecer uma pessoa do mundo, mas não aceito imposições. Manda-me um homem então, para que conviva aqui comigo. Se aceitá-lo, casar-me-ei com ele. E não digo mais nada para ti que não seja um sim de aceitação do compromisso.
    O pai então saiu feliz, pois acreditava estar solucionado o problema. Chamou o filho mais velho do duque de um reino próximo, e ele aceitou estar com a moça. Quando chegou lá, o filho do duque tentou logo se mostrar muito cortês, fazendo uma reverência em que quase tocou o chão. A jovem princesa deu de ombros e não se interessou muito por isso. Como vivia sozinha, não se importava muito com aquelas formalidades. Nos dois primeiros dias, não lhe dirigiu a palavra. Depois desse tempo mostrou-se mais receptiva. O jovem nobre começou a achar a princesa muito agradável. Passavam muito tempo assistindo juntos ao espelho. Mas com o passar dos dias, não entendia porque começou a sentir-se incomodado com as palavras dela. Sentia-se sufocado, como se dos lábios dela saísse vagarosamente alguma substância que o tornava incapaz de respirar. Um dia, inexplicavelmente para ela, ele teve um impulso e jogou-se pala janela da torre. E despencou lá embaixo, completamente morto. Tinha a aparência de um morto por afogamento. A jovem não entendeu exatamente o que havia se passado, logo agora que se afeiçoava ao rapaz e estava próxima de declarar o seu sim. O rei entendeu menos ainda, e precisou de toda a sua habilidade diplomática para não deixar o incidente tornar-se uma guerra. Resolveu então que o próximo candidato (sim, deveria existir um segundo rapaz) não deveria ser da nobreza, para evitar que novos acidentes ocorressem.
    O segundo rapaz era um membro da corte, mas de menor importância. Tudo ocorreu como da outra vez, à exceção de que ela demorou três dias para dizer-lhe a primeira palavra, talvez ainda traumatizada com o evento anterior. Passados esses dias, entenderam-se muito bem, assistiam ao espelho. Curiosamente, esse rapaz também foi acometido do mesmo surto estranho do anterior e jogou-se pela janela, morrendo também com os olhos esbugalhados e a boca aberta, como um náufrago. Como a menina mostrou-se muito triste e pediu ao pai que trouxesse outro rapaz, o rei decidiu trazer o terceiro. O quarto já foi por questão de honra. E o quinto, e o sexto. Quando, por volta do décimo quarto rapaz, pressentia que, se continuasse naquele passo, em breve não haveria mais corte, o rei decidiu recrutar os rapazes entre a plebe. E passaram por ali tantos rapazes que até perdemos a conta de quantos foram. Todos se jogavam pela janela e morriam com cara de afogados.
    Até que veio aquele rapaz. Nada de especial. Apenas como não era muito atlético, não conseguiu correr dos guardas recrutadores como faziam muitos jovens. É claro que já imaginam que a essa altura a princesa era conhecida como viúva negra (mesmo sendo uma viúva que nunca se casou) e outros nomes pejorativos. Pelo mesmo motivo que foi pego, não foi capaz de reagir quando jogaram-no no quarto da princesa. Esse rapaz teve sorte, pois ela falou com ele logo no primeiro dia, ainda que não tenha sido um privilégio exclusivo seu. Como de costume ela gostou bastante dele, e ele dela. Conversavam e assistiam o espelho. Ele não gostava muito das cenas do espelho, mas gostava de suas conversas. Mas logo veio a sensação de mal estar causada pelas palavras da jovem. Aquele rapaz, franzino e de semblante tão pacato, foi o primeiro a ter uma reação inesperada: em um arroubo de loucura ergueu o espelho no ar e bateu com ele violentamente na cabeça da jovem princesa enquanto ela falava. A jovem caiu desacordada, o espelho em cacos. Mas a sensação diminuiu muito pouco, ele já estava contaminado demais. Mas foi o suficiente para que, antes de se jogar pela janela, o rapaz percebesse as tranças da princesa esparramadas pelo chão. Jogou-as então pela janela, intencionado a descer por elas como na história que ouviu quando criança. No entanto, assim que começou a descer pelas tranças, não ousando olhar para baixo, percebeu que elas não iam muito além de dois palmos abaixo da janela. Ele riu e pensou alto:
    -Esta é a diferença da realidade para o que vemos em um espelho.
    E soltou as mãos.
    Feito isso, seus pés atingiram o chão em menos de um segundo, e estranhou ser tão rápido, e que a morte fosse tão parecida com a vida. Olhando para o que acreditava ser o chão, viu que estava pisando em uma pilha de cadáveres que ia até a base da torre e que poderia ser facilmente descida. Assim o fez, lamentando a sorte daqueles tantos rapazes que, entretanto, tornaram-se a sua própria sorte. Olhando para cima viu a princesa na janela, com o rosto tingido de vermelho, que pareciam daquela distância lágrimas sinistras. Comovido com sua aparência triste, gritou:
    -Vem!
    Mesmo sem saber se ela podia ouví-lo.

    quinta-feira, abril 20, 2006

    (re)adAPTAção

    Ela era uma pessoa normal. Uma pessoa normal que pagava a TV a cabo e não tinha plano de saúde, como todas as outras. Tinha uma casa e um emprego que lhe bastava para pagar as contas. Tinha apenas um problema. Mas não. Seu problema não era dificuldades na vida sentimental, apesar de todas as histórias de pessoas bonitas e bem sucedidas tratarem de seus problemas sentimentais. Na verdade poucas vezes ela era vista sozinha. Namorados não eram seu problema. E não digo somente em quantidade. Todos eram muito bons para ela e amavam-na bastante. Bem, falamos de um problema, certo? Exagero certamente. Não era exatamente um problema. Uma particularidade seria mais bem dito.

    Quando eu a conheci, e eu não sei quanto tempo fazia que tudo tinha começado. Era uma mulher bonita, e não deixou de ser nem no final, que usava roupas de grifes famosas, bolsas combinando com os sapatos impecavelmente, cabelos rigorosamente alinhados pela escova feita diariamente, não ia sequer à esquina comprar pão a pé, mas sempre de carro. Para definir em uma palavra, era o que se chama comumente por “patricinha”. Só percebi a mudança quando terminou o seu relacionamento. Não passou muito tempo e começou a se envolver com um homem muito culto. Logo começou a ler Nietszche, Foucault e outros autores que as pessoas adoram citar para mostrarem-se inteligentes. Ela quer impressioná-lo – pensei. Já é tempo de dizer que ela se chamava Amanda, e ele a chamava de Danda, apelido que eu achava terrível, mas não era da minha conta. O relacionamento não durou muito.

    Logo em seguida veio o outro. Com ele vi as coisas modificarem-se mais. Começou a curtir músicas novas, como as que ele ouvia. Ela passou a freqüentar lugares diferentes. Seu cabelo mudou de cor, começou a usar munhequeiras no lugar do relógio caro, tênis All Star no lugar do scarpin, camisetas estilosas e calças mais descontraídas. Transformou-se no que podemos chamar de “alternativa”. O rapaz aparentemente compartilhava da minha falta de apreço pelo apelido Danda, e passou a chamá-la de Dinha. O novo apelido não era tão melhor assim, como em geral não são nenhum desses diminutivos de nome, mas mais uma vez não era da minha conta. Esse relacionamento durou bastante tempo. Percebi que os livros do Foucault e do Nietzsche nunca mais foram lidos. Inclusive ouvi dela certa vez que eram muito chatos, mas tempos atrás lhe eram muito interessantes. Achei engraçado como ela se adaptava tanto a cada um dos seus relacionamentos. Engraçado porque seria burrice criticar um ser humano por ser adaptável, afinal é o que nos faz o que somos e não vou entrar aqui no mérito de se o que somos é bom ou ruim.

    O namorado seguinte resultou em uma mudança mais radical que a anterior. Transformou-se praticamente em uma hippie: fumava maconha, tornou-se vegetariana, amava a natureza. Saiu de sua casa no Catete e foi morar em uma república instalada em um casarão em Santa Tereza. Dinha tornou-se passado, era chamada de Bina agora. Esse foi o momento quando percebi que mais do que roupas e gostos, ela modificava-se ainda mais profundamente. Comecei a perceber que sua própria personalidade mudava também. Mas nesse momento ainda estava cercada por pessoas que eu considerava legais, portanto essas mudanças não me atingiam muito. Na verdade isso aconteceu com o homem que veio depois, um empresário de muitos recursos. É claro que ela enfim deixou de freqüentar os lugares que eu freqüentava, então a partir daí comecei a vê-la muito menos. E quando tornei a vê-la foi um certo choque, o nariz arredondado havia se tornado pontudo e empinado. Seu nariz nunca havia sido grande, mas agora era tão fino que realmente chamava muita atenção. E o mais importante, quando tentei dar um abraço para matar a saudade fui recebido com certo desdém. Fiquei chateado, mas compreendo que quando as pessoas se afastam muito fisicamente, acabam tornando-se estranhas à vida afetiva dos outros, mesmo tendo tido uma relação anterior da mais intensa amizade. Ah, e agora chamavam-na por Babi. Foi aí que tive pela primeira vez a dificuldade de lembrar do seu nome verdadeiro. E a partir daí ela começou a ter dificuldades para lembrar de qualquer um dos nomes que eu pudesse ter. Conheci ainda a Fifi, a Fefa, a Lê, a Leca, a Teca. A Tiça curiosamente lembrou-se mim, apesar de eu não conseguir reconhecê-la. Isso porque depois de todo esse tempo além do nariz, a boca, a testa, os seios, o maxilar e mais alguma coisa que não consegui detectar já haviam sido reparados pelo bisturi. Não preciso dizer sobre os cabelos, porque eles já mudavam desde tempos que nem me recordo mais. Certo dia desses um amigo em comum contou-me que ela declarou-se lésbica, e namorou duas meninas. Não quis saber por qual nome ela atendia agora. Isso realmente me confundia. Na verdade algumas vezes eu pensei tê-la visto na rua, mas não tive coragem de tentar conversar com ela. Não tinha mesmo muita certeza de que era ela.

    Semana passada, quando já fazia então muitos anos que não a via, estava vendo algumas fotos antigas. Ela estava presente nas minhas fotos até ser Bina, ou Babi, algo parecido. Era como se eu estivesse com uma pessoa diferente em cada uma delas. Quanto a mim, se passasse as fotos rapidamente, ia formar-se uma animação grotesca, cabelos sumindo e rugas brotando exatamente onde se podia esperar que aparecessem. Toda minha vida pareceu-me uma novela muito previsível, como todas são. Mas a novela da vida da Dinha, ou Fefa, parecia um filme de vanguarda, cheio de cortes inesperados. Mas eu não a invejo, pois sei que um dia ela se cansará das mudanças, se é que já não se cansou, e buscará um lugar onde se agarrar para permanecer ali até o fim. Isso acontece mais cedo ou mais tarde, mas com uma diferença fundamental: ela talvez não se lembre mais o que é quando resolver fazer a roda parar de girar. Eu talvez possa nunca ter descoberto o que sou ou poderia ser. Qual opção é mais vantajosa? Certamente não sei. Afinal, alguém pode voltar para ver a diferença?

    domingo, abril 16, 2006

    Velha rotina

    O dia realmente havia começado da forma mais ordinária possível. O relógio despertou três vezes. Ele resmungou bastante enquanto se levantava. Foi ao banheiro, lavou o rosto, urinou. Tomou uma xícara de café e comeu uma fatia de queijo branco. Vestiu-se com pressa depois do banho e saiu. Voltou para verificar se havia fechado as janelas da sala. Foi caminhando pela rua até a estação do metrô cantarolando. Cantava baixinho, é claro, e durante os intervalos entre cada trago. I got no style. I’ll take my time. A fumaça era suave e o sabor do tabaco tostado era doce. Dentro do metrô leu algum livro banal - tinha resolvido que era inútil estudar ali, pois não conseguia fazer anotações. As pessoas esbarrando o incomodavam. Apenas mais um dia comum, como foram todos os anteriores e como os futuros também haveriam de ser.

    Mas não. Não vamos revelar agora que naquele dia aconteceu algum evento extraordinário. Pelo menos não enquanto caminhou até o trabalho ou durante as horas que passou lá, sentado e atento, em sua atividade enfadonha – e todas elas causam enfado, por mais interessantes que pareçam ser, se são obrigatórias. Também não aconteceu nada durante o almoço, quando seus colegas demonstravam o habitual falso interesse pelas suas conversas. E ele revirava um ou outro legume que achava ruim, e colocava no cantinho do prato. Nem mesmo durante sua volta para casa aconteceu nada. Ele somente voltou para lá. Fez o caminho mais longo, para pegar um ônibus. Não voltava de metrô, que ficava muito cheio naquele horário. Passou em frente a uma banca de jornal onde viu algumas revistas. É certo que ele não fazia isso todo dia, mas, considerando a freqüência, já caracterizava uma rotina, ou uma rotina alternativa. Saltou dois pontos antes de sua casa para fumar mais um cigarro enquanto caminhava. E isso ele fazia sempre.

    E dormiu. Viu televisão e ouviu música antes, é verdade. A warming trend, a gentle friend. A man must build a fortress to defend.

    Algumas vidas estão destinadas a isso: são ordinárias. E serão. Mas então qual o sentido de contar o dia tão tedioso desse homem? Uma mensagem de pessimismo? Moralismo? Não. E nem uma lição também. A vida dele era só isso mesmo. Ponto. Não há moral nessa história. Só uma única peculiaridade. Ou talvez curiosidade seria mais apropriado? Enfim, o fato é que uma única vez ele não compareceu ao trabalho: ligou dizendo estar doente. Todos acreditaram, é claro! Porque ele mentiria? No dia seguinte ele compareceu normalmente, saudável. Aquele foi o único dia de sua vida quando os outros ali não podiam ter certeza exata do que ele havia realmente feito. Bobagem? Talvez. Mas mesmo algumas bobagens às vezes assustam um pouco. Mas o estranhamento logo se desfez enquanto o encontravam dia após dia. E aquele dia foi até esquecido, talvez até por ele.

    Até que ele se aposentou e pouco tempo depois veio a falecer. E eles haviam feito uma bonita festa de despedida e seu enterro teve algumas bonitas coroas de flores, com dizeres bonitos também. Pois é assim que terminam todas as histórias dos homens. Tenham eles tido vidas fantásticas ou ordinárias. E não há nada de novo nisso.

    sexta-feira, abril 14, 2006

    Início...

    Minha proposta inicial para o Contos Afins era de um fanzine literário impresso. Como meus fanzines sempre privilegiaram as HQs, queria me atrever a entrar em uma área nova. Mas produzir um fanzine demanda um tempo que não possuo e um custo elevado (xerox, postagem, etc.). Para que a idéia não morresse, decidi transformar o Contos Afins em um zine virtual. Como trata-se basicamente de textos, o blog torna-se uma ferramente eficiente.
    Aproveito para convidá-los a enviar seus textos para publicá-los aqui, caso desejarem.
    E começa.