quarta-feira, junho 14, 2006

O corpo sobreposto, por Bruno Alvaro

Eu o vi abrir a braguilha, não com curiosidade ou vontade de ver. Tirando a pele branca, não apressadamente, com certo afinco de fazê-lo o mais normal o possível. Vi então sua alma sombria e seu sorriso louco: foi então que eu tive certeza que não era a primeira vez que ele fazia aquilo.
Eu ali desprevenida, sem proteção e desgarrada naquele ponto da cidade que eu conhecia bem e sabia não ser um dos melhores para se estar. Lembro-me bem de cada detalhe que, volta e meia, tento apagar da minha vista. Mas é muito difícil de se desfazer de uma pintura deste tipo: pregada na sua parede mais vista por você mesma.
Eu ouvia carros passarem, as buzinas, as vozes das pessoas. Mas do nada, não ouvia mais nada, do simples nada, eu só conseguia ouvir as batidas do meu coração, guardado entre os meus seios, que naquele momento, já estavam marcados por dentadas. E eu podia sentir algo quente escorrendo do meu seio esquerdo, eu sei que não era sua saliva, pois o que antecedia ao calor era um ardido muito incomodo: meu mamilo esquerdo estava sangrando.
Parei de ouvir até a batida do meu coração, só podia ouvir agora o seu respirar forte, muito forte. Lembro-me bem dele rasgando meu vestido azul de verão, pois era verão, mas eu suava mais que num verão normal, jogando-me de frente a uma parede, onde, eu lembro bem, estava escrito: “Gentileza gera gentileza” e “Só Jesus expulsa o demônio das pessoas”. Até cheguei a sorrir neste momento, não sorri por satisfação ou prazer, mas da vida a gente não tira nenhuma lição, eu acho. Ele suspirando, suspirando, suspirando, suspirando, me dizendo coisas, coisas, coisas, como um eco eterno em minha vida.
A sensação eu ainda lembro, a dor ainda reside, mas eu não sei explicar, eu não posso explicar. E de pensar que eu ouvia os carros passarem, as buzinas, as vozes das pessoas...
Ele conjugava várias vezes o verbo arrombar. Repetidas vezes. Primeiro no futuro, depois no presente e depois de alguns minutos eternos, no passado. Não vou me ater a tentar definir melhor esses três tempos verbais, pois em apenas um ele me violentou.
Ninguém sabe ao certo a dor de alguém se sobrepor a você forçadamente. Lamber-te como uma coisa a ser lambida. Machucar-te severamente a alma, pois alma, sim, a alma também sangra. E o corte na alma não cicatriza nunca, nunca mais.
Mas eu ainda pensava, não amaldiçoava, pensava. E eu queria uma forma de livrar-me daquilo e mesmo sangrando, descobrir um mundo cego.
Pois o mundo de homem é cego. E depois de gozar e gozar sobre pressão, homem fica mais cego. O bruto arrastou-me a cara na parede enquanto violentava-me. Enquanto “gentileza gera gentileza” coloria-se com meu sangue, eu vi, no mesmo lado esquerdo do meu mamilo cortado, outro pau. Outro pau que também poderia sangrar uma alma, extinguir uma vida, talvez a minha, não sei. Expulsar um demônio escondido ou, quem sabe, despertar outro, até então tão contido Mas se é das cinzas que se nasce de novo e de novo e de novo, é com pau que se faz mais fácil quebrar ovos. Que monstro imbecil, pensar que poderia, simplesmente, gozar e gozar e gozar e gozar e gozar.
Como, eu não sei, pois da vida, eu não trago lições, nem carrego demais da conta, eu acho. Eu não fiquei lá, mas ele sim. E se foi bom para ele acabou por tornar-se melhor para mim. Só sei que homem depois que cai daquele jeito não levanta mais. E eu conjugava e conjuguei várias vezes, várias vezes, várias vezes o verbo matar. E enquanto conjugava seu sangue espirrava, molhava-me, limpava-me, banhava-me. Pois eu já nem tinha mais sangue meu, nem sentia mais o ardido no seio, na vagina, na alma...
E eu batia, batia, batia, batia, batia, batia, batia. E eu sorria, sorria, sorria, sorria, sorria, sorria, sorria. Não parei até ver ou não ver mais nada dele, nem da outra frase que estava escrita na parede das docas: “Só Jesus expulsa o demônio das pessoas”.
E de pensar que: “gentileza gera gentileza”. Só sei que nunca mais informei as horas para ninguém...